Evolução da historiografia filosófica em Portugal até fins do século XIX

A terceira parte da História da Filosofia, identificada com a História da Ciência, é exposta principalmente sob a forma de notas, nos lugares próprios dos diferentes volumes. Assim, por exemplo, o vol. II, consagrado à Física Geral, contém anotações sobre (I) o conceito de matéria e, em especial, a conceção cartesiana da extensão, (II) os ele mentos primordiais e teoria do Mundo, (III) a teoria aristotélica da matéria e da forma, (IV) a teoria do composto humano, (V) a teoria dos elementos, (VI) a conceção do espaço, (VII) o vácuo, (VIII) a divisibilidade da matéria, (IX) a teoria do movimento, (X) Deus e o movimento, especialmente na teoria cartesiana, (XI) a impenetrabilidade da matéria, etc. A dispersão fragmentária destas notas não afecta o seu valor intrínseco, pois algumas merecem, pela exatidão e clareza, um lugar de relevo na nossa bibliografia da História das Ciências.

Inácio Monteiro e Luís Verney, por antagónicos que tenham sido os seus sentimentos políticos e as parcialidades em que militaram, estavam intelectualmente aparentados pelo mesmo objetivo pedagógico de reportar, sem espírito de sistema, a problemática filosófica à informação científica exata. Desavindos, no entanto, pelo menos na esfera da ação civil, pode conjeturar-se com algum fundamento que a Philosophia libera seu eclectica não foi totalmente alheia ao propósito de refutar as críticas que Verney dirigiu ao ensino filosófico da Companhia de Jesus, e que o polemista do Verdadeiro Método de Estudar dissimulou a irritação que este livro lhe causara ao afirmar que lhe não fazia « sombra », por seguir caminho diverso do do seu competidor 26.

III. — A reforma pombalina da Universidade, que sob certos aspetos, científico, pedagógico e arquitetónico, equivaleu a nova fundação, não suscitou no domínio da história do pensamento filosófico nada que, de longe ou de perto, se compare ao fecundo e continuado movimento de investigação histórica do Direito pátrio 27. Compreende-se: as premissas do ideário pombalino, absolutista e imutável, não só a contrariavam como a impediam.

O relativismo filosófico, que brotava germinalmente do «ecletismo » das exposições histórico-filosóficas de Verney e de Inácio Monteiro, e a predisposição do espírito para a tolerância e para a prevenção contra as demasias da autoridade e da arrogância intelectual, que é o fruto da convivência com a história das ideias e das opiniões, eram incompatíveis com o dogmatismo jusnaturalista e com a ilimitação discricionária da atividade jurídica do Estado; e, além disto, exigindo-se apenas o breve sumário das «seitas filosóficas» e dos « esforços dos filósofos mais célebres », não se animava o desenvolvimento do estudo objetivo da História da Filosofia, por demais admitida como mera propedêutica, de acordo, aliás, com a orientação da Reforma do ensino do Direito e com Verney, isto é, com a ideia de que o conhecimento cabal dos progressos de um problema ou de uma disciplina filosófica só é possível depois do conhecimento geral das diversas conceções.

Prescrevendo oficialmente este conceito, que Bacon acentuara no De dignitate et augmentis scientiarum (I. II, c. IV) e já havia aparecido no De civitate Dei de Santo Agostinho, Pombal não carecia de se abonar com precedentes históricos porque tornava logicamente explícita uma das consequências da sua conceção do Estado, mas, no ponto que nos ocupa, a coerência lógica estrangulou o desenvolvimento dos estudos histórico-filosóficos, objetivamente considerados. A imposição oficial de uma metafísica desterrava como indesejável a curiosidade de conhecer as diversas criações filosóficas e, sobretudo, sufocava o espírito de independência mental, um dos frutos do estudo histórico dos grandes sistemas e da biografia de quase todos os grandes pensadores. Por isso, Pombal mandara (1773) eliminar das edições portuguesas das Institutiones logicae et metaphysicae a referência justamente elogiosa que António Genovesi fazia à Lógica de Aristóteles «nome de um filósofo tão abominável (que) se deve procurar que antes esqueça nas lições de Coimbra do que se presente aos olhos dos académicos como um atendível corifeu da Filosofia»  e mais largamente ainda, em 1775, (ofício de 4 de Fevereiro) nas Reflexões sobre os Compêndios de Lógica e de Ética de Heinécio para uma nova edição, não só em relação a Aristóteles como a outros.

António Soares Barbosa (1734-1801), o filósofo da reforma pombalina, não traiu o pensamento oficial. Anteriormente à Reforma da Universidade (1772), no Discurso sobre o Bom e Verdadeiro Gosto na Filosofia (Lisboa, 1766), considerara já a História da Filosofia como sendo essencialmente a história dos erros, pois reduzia-a à «história dos filósofos que até agora nos precederam, na qual descobrimos os seus erros, suas opiniões, suas disputas, e os conhecimentos até agora alcançados» (p. 4).

Foi esta ideia que orientou, como tudo indica, as lições preliminares da sua cadeira universitária, mas se Soares Barbosa nos não deu, embora limitadamente concebida, uma História Geral da Filosofia, legou-nos, em compensação, em cumprimento dos Estatutos da Universidade, que prescreviam além da introdução histórica geral a história particular de cada uma das disciplinas filosóficas, dois excelentes capítulos acerca da «História da Filosofia moral entre os pagãos» e «Da Filosofia moral entre os cristãos», com os quais iniciou a « Introdução » à primeira parte do seu Tratado Elementar de Filosofia Moral (Coimbra, 1792), uma das obras capitais da nossa bibliografia filosófica.

Pela segurança da informação, colhida em parte nas fontes, especialmente no que respeita aos modernos (Aristóteles, Cícero, Padres da Igreja, Grócio, Hobbes, Cumberland, Hutcheson, Thomasius, Puffendorf, Wolff, etc.), pois no que toca aos antigos recorreu sobretudo aos informes de historiadores (Brucker, Deslandes, Buddeus, Batteux (Histoire des causes premières, ou exposition sommaire des pensées des Philosophes sur les principes des êtres, Paris, 1769), Walch (Hist. Log., De atheismo Arist.), Justo Lípsio (Manuductio ad philosophiam stoicam), pela objetividade do juízo e pela coerência crítica, estas páginas acreditam notavelmente os talentos do autor, embora historicamente padeçam do predomínio sistemático.

IV. — Nos derradeiros anos do século XVIII a conceção da História da Filosofia como história das seitas e das aberrações do espírito já não se apresentava como conceção única ou dominante. O facto devia-se, sobretudo, à influência da Histoire des philosophes modernes, de Saverien, que no prefácio do vol. I havia criticado, por dispersiva e caótica, a ordenação cronológica da história científica e filosófica, defendendo o critério de que devia ser exposta em função das grandes individualidades que se ocuparam de objetos ou de pensamentos afins.

Foi Francisco Luís Leal (1740-1820?) quem importou este conceito, na História dos Filósofos antigos e modernos para uso dos filósofos principiantes (Lisboa, 2 vols., 1788, 1792).

Discriminando três conceitos de História da Filosofia, que «ou ensina em que tempo e de que modo se inventaram as ciências e como chegaram às nossas idades, ou expõe o sistema de cada uma das seitas, ou conta as vidas, as ações e as fadigas literárias dos filósofos», o           autor preferiu o último, por influência de Saverien, cujo método segurava ser excelentíssimo», embora se socorresse na exposição dos factos, das notícias e das anedotas da Histoire critique de la Philosophie (Amesterdão, 1737 e 1756), de Deslandes, da História Crítica de Brucker e de outros que deram largo crédito a tradições fabulosas.


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