Aplicou, assim, um método diverso do até então seguido, e é esta circunstância que merece destacar-se porque sob os demais aspetos a História dos Filósofos representa até um retrocesso.
O projeto de Leal era ambicioso e vasto: atingir o próprio século em que vivia. Não ultrapassou, porém, os primórdios, porque apenas deu ao prelo, no vol. I, as biografias dos «filósofos do povo hebreu, caldeu, e dos da Pérsia, da Índia, da Fenícia, da Cítia, da China, e dos gregos da filosofia fabulosa»; e, no vol. II, as de Homero, Hesíodo, Epiménides, Minos, Radamanto, Triptolemo, Zaleuco, Carondas,Drácon, Licurgo, Tales, Sólon, Cíton, Pítaco, Bias, Cleóbulo, Periandro, Pitágoras, Heraclito, Demócrito, Protágoras, Ferecides. Em todas as biografias, algumas das quais são seguidas de excursos e de digressões, é manifesta a deficiência da informação, colhida normalmente em vulgarizadores da História de Brucker, cuja nomenclatura adota, a ausência de cronologia, a falta de perspetiva histórica, a carência de problemática e de crítica objetiva —, coisas porventura secundárias para quem pretendia acima de tudo moralizar pela divulgação de conhecimentos necessários à formação de uma cultura ampla e útil, isto é, a Filosofia, cuja história confundia praticamente com a história das produções do espírito humano.
Integra-se ainda nesta conceção individualizante Luís António de Azevedo, com os prefácios à reedição da tradução do Manual de Epicteto (Lisboa, 1785) feita pelo bispo de Viseu, F. António de Sousa, nos fins do século XVI, e à sua tradução dos Rivais, de Platão (Lisboa, 1790).
Na primeira, fez uma exposição da filosofia estoica, que, apesar de sucinta, manifesta algum conhecimento das fontes e dos escritos fundamentais acerca do estoicismo, designadamente a famosa Manuductio ad philosophiam stoicam, de Justo Lípsio, que tão lida e apreciada havia sido no século XVII, constituindo uma das fontes das ideias mais divulgadas; e aditou ao texto copiosas notas, por vezes solidamente assentes em boa erudição.
Nos Rivais, ou diálogo moral de Platão sobre a Filosofia, traduzido do Grego em linguagem Portuguesa e ilustrado com Escólios e Anotações críticas, seguiu o método adotado no livro anterior, antecedendo a versão de um «discurso preliminar», no qual se ocupou da vida e merecimentos do fundador da Academia.
Com ser fraca a penetração filosófica e a erudição também não ser vasta nem sólida, pois nem sequer formulou o problema da autenticidade deste diálogo, que a crítica coloca entre os suspeitos, Luís António de Azevedo exprimiu com estes escritos uma atitude de objetividade digna de registo.
V. — Apesar do embate de novas ideias e de critérios mais objetivos, o esquema expositivo que Verney aclimatara atingiu ainda os primeiros tempos do século XIX, suscitando, como era lógico e a realidade comprova, duas atitudes afins em face da História da Filosofia, divergindo apenas no grau de dubiez — a dos que, admitindo um sistema de ideias e de crenças como expressão absoluta e totalitária da verdade, a consideravam, no sentido tradicional, como a história das seitas e das aberrações do espírito humano, e a dos que, de pendor cético ou pretensamente crítico, e acentuando, aliás, este modo de ver, só viam nela o museu das opiniões extravagantes e das «manias».
Deste segundo parecer foi José Agostinho de Macedo, se porventura é possível atribuir constância e firmeza de ideias filosóficas em quem fez do sucesso versátil aspiração suprema3; e do primeiro temos um testemunho mais sério nos diálogos de O Filósofo discursivo, ou sobre a História da Filosofia e princípios físicos do composto humano, Lisboa, 1802, do franciscano da Arrábida Fr. Manuel de Santa Ana. Obra insignificante, é curiosa, no entanto, como documento da reação contra Voltaire e os « filósofos libertinos » do século XVIII, pois como História da Filosofia é deficientíssima na informação e retardatária na construção e no plano expositivo.
Mais não é preciso para se patentear o claro sintoma do esgotamento de uma conceção que deviera anacrónica, a tal ponto que o esquecimento sucedeu rapidamente aos reparos críticos que ela ainda suscitou, dos quais o mais relevante, porventura, foi, sob o véu do anonimato, em 1819, o de Manuel Pires Vaz (1762-1834), professor no Seminário de Coimbra, no artigo Breve preparação para os compêndios de Filosofia racional e moral de Genuense e de Heinécio.
Pires Vaz, baseando-se fundamentalmente em considerações didáticas, inculca a ideia de que a História da Filosofia não deve ser a propedêutica mas o remate dos estudos filosóficos. Era a voz da experiência docente que não do saber meditado, mas que ressoava longe por se produzir num periódico científico, prestigioso e orientador da opinião ilustrada.
A substituição das ideias de Verney, porém, não resultou de críticas desta natureza, que fundamentalmente gravitavam em torno do manual de Genuense, decretado por Pombal, mas da influição de novas ideias provindas do estrangeiro, que, além de assentarem em mais ampla e sólida informação, procuravam dominar a dispersão das conceções filosóficas por ideias centrais que lhes dessem unidade.
A primeira destas ideias, de feição sistemática, parece ter sido colhida inicialmente em Degerando e, mais tarde, amplamente em Victor Cousin; a segunda, dinâmica, isto é, conferindo um sentido ao aparecimento e à sucessão das conceções filosóficas, tem o vinco inconfundível da admirável falange de historiadores alemães de formação hegeliana.
A famosa Histoire comparée des systèmes de philosophie, relativement aux principes des connaissances humaines (1804 e 1823), de Degerando, que substituiu a bio-bibliografia tradicional pela exposição dos sistemas antigos e modernos em relação ao problema da origem e fundamento do conhecimento, foi lida, designadamente por Silvestre Pinheiro Ferreira, mas não exerceu influência sensível, embora lisonjeasse o orgulho pátrio, por atenuar as triviais pedantices dos seus compatriotas acerca do «obscurantismo» peninsular como elogio de Verney un écrivain aussi couragaux dans ses tentatives, que sage dans ses maximes.
O mesmo se pode dizer da Histoire de la philosophie rnoderne depuis la renaissance des lettres jusqu'a Kant, précédée d'un abrégé de la philosophie ancienne depuis Thalès jusqu'au XlVe siècle, de Jean Gottlieb Buhle, que Jourdan traduzira (7 vols., Paris, 1816) e sobretudo do Manuel de l'Histoire de la Philosophie, traduit de l´ allemand de Tennemann, por Victor Cousin (Paris, 1829 e 1839), cuja referência às fontes, objetividade crítica e copiosa informação bibliográfica poderiam servir de estímulo e de orientação.
De todos estes escritos concebidos ou redigidos anteriormente à História da Filosofia (1833-36) de Hegel, cuja profunda intuição do objeto desta disciplina —, o pensamento que se pensa a si próprio sob forma objetiva, isto é, o processo mediante o qual as categorias da razão atingem forma conceptual e consciência distinta —, determinou um rumo novo à investigação histórico-filosófica, assinalando uma época, só a Gëschichte der Philosophie (Hamburgo, 1829-53) de Henrique Ritter, traduzida em francês por Tissot, Trullard e Challemel-La-cour, deixou sulco crítico nas Reflexões sobre o método de escrever a História das Ciências e particularmente a da Filosofia, de Silvestre Pinheiro Ferreira.