Evolução da historiografia filosófica em Portugal até fins do século XIX

O notável pensador, cuja atividade filosófica domina soberanamente a primeira metade do século passado, conviveu largamente com a literatura filosófica, lida em geral nos próprios originais, como testemunha sobretudo o Essai sur la Psychologie, comprenant la théorie du

raisonnement et du langage, l'ontologie, l'esthétique et la dicéosyne (Paris, 1828), mas, em rigor, não escreveu uma página de História da Filosofia, e até estas Reflexões são mais obra de filósofo que de historiador.

Recaem elas sobre o objeto e, sobretudo, sobre a forma expositiva da História da Filosofia, e deu-lhes ensejo, pelo menos ocasional, a História da Filosofia do «célebre Doutor Ritter». Para Silvestre Pinheiro Ferreira a História da Filosofia desde Plutarco a Ritter, passando por Stanley, Brucker e Degerando, seguira um « método confuso », de tal sorte que havia « hoje um riquíssimo cabedal amontoado e discutido, para que um homem, que não for erudito, mas filósofo, coordene uma boa história da Filosofia; porque tudo quanto daqueles vastíssimos engenhos possuímos com o título de histórias da Filosofia nada menos são do que aquele título inculca».

Dentre todas se destacava a História de Ritter, mas por não ter orientado convenientemente o seu «prodigioso trabalho», este «eruditíssimo escritor umas vezes deixa envolvido nas trevas da confusa nomenclatura da filosofia grega o sentido das doutrinas dos autores; outras vezes, empreendendo elucidá-las, dá às expressões por eles empregadas valores que só adquiriram em tempos muito mais recentes. Da classificação das ideias, próprias de cada uma das escolas, até parece não ter tido a menor noção; e quanto às teorias, tanto psicológicas como físicas, mas sobretudo no que toca a estas últimas, ou lhes presta os erros, que os precedentes historiadores lhes imputaram, ou lhes supõe doutrinas, que nunca foram, nem podiam ser, daqueles homens, nem daquelas épocas ».

Impunha-se, assim, em seu entender, um «novo ponto de vista » que libertasse a história científica e filosófica da estreiteza do método cronológico, capaz de produzir « composições anais, mas não a história da Ciência, porquanto esta última denominação supõe que ali se há-de encontrar claramente expendida não somente a concatenação dos factos e o seguimento donde se depreende a relação de causas e de efeitos que entre eles existe, mas também a marcha, com que respetivamente se foram desenvolvendo os diversos elementos de que a ciência se compõe ».

Para se alcançar este objetivo cumpria ter em consideração os seguintes «cinco elementos, cujo concurso é necessário para que qualquer ramo dos conhecimentos humanos mereça ser qualificado com o nome de ciência»: os factos, a nomenclatura, o sistema, a teoria e o método. Vejamos em que consistem e como se relacionam.

Como todas as disciplinas científicas, a História da Filosofia assenta em factos, e «à medida que a observação vai enriquecendo a ciência de factos, é forçoso que também vá crescendo o número de expressões próprias a relatá-los e expendê-los.

«Também é de prever que os factos observados se vão grupando em classes, ordens, géneros e espécies; e por esse modo dando origem a um sistema, mais ou menos perfeito, segundo o esmero com que as observações tiverem sido feitas e a nomenclatura houver sido coordenada.

«Mas a ciência reduzir-se-ia a uma estéril e ociosa ocupação se se limitasse a observar os factos e a distribuí-los em sistema. Para torná-la útil à sociedade humana é mister que, pela combinação dos factos, se possam reconhecer as causas dos fenómenos observados, e que, conhecidas aquelas causas, se possa assinar quais devem ser provavelmente os seus efeitos: e estas duas ordens de conhecimentos constituem a teoria da ciência.

«Parecia que com estes quatro elementos estariam satisfeitas todas as condições, indispensáveis para qualquer ramo dos humanos conhecimentos se achar elevado à categoria de ciência; mas na realidade, para ela se julgar completa, ainda é preciso que se crie o que se costuma chamar, com muito acerto, a filosofia da ciência, e que consiste no complexo das regras que nos devem servir de guia, para bem observarmos os factos, para formalizarmos uma nomenclatura regular e proporcionada às precisões sempre crescentes da ciência, para irmos sucessivamente coordenando em sistema os novos factos, que se forem descobrindo; e, enfim, para deles deduzirmos uma teoria que não só explique a produção daqueles factos, mas que torne a ciência aplicável à satisfação das diversas precisões sociais. A este complexo de regras, ou de princípios fundamentais da ciência tem-se também dado o nome de método, que constitui o quinto e último elemento de qualquer ciência».

O desenvolvimento e progresso destes elementos não é simultâneo. Por isso, Pinheiro Ferreira, examinando o estado das ciências no seu tempo relativamente a cada um deles, notava «que umas, por extremo ricas em factos, são comparativamente pobres em nomenclatura; noutras, a abundância dos factos, por falta de sistema, forma um verdadeiro caos; noutras, enfim, o espírito, encantado pela beleza do sistema, que nos permite abraçar de um golpe de vista uma imensa quantidade de factos, descobre por fim que umas vezes são deficientes em nomenclatura, outras vezes são inúteis maravilhas, por falta de uma teoria que, explicando-nos a ligação dos fenómenos uns com os outros e com o resto da Natureza, nos habilite a converter estas interessantes generalidades numa ciência prática e positiva, em proveito da Humanidade». «Mas o que em quase todas, ainda as mais adiantadas, falta inteiramente, é a filosofia da ciência, mediante a qual os talentos ordinários possam continuar a obra dos génios criadores. Daqui provém que quase todas, depois de terem feito rápidos progressos durante a vida destes, ficam por largo tempo estacionárias, enquanto não aparecem novos génios, que ponham o remate à obra, que os primeiros deixaram imperfeita, ou que, abrindo novas sendas, dilatem, com assombro dos seus contemporâneos, o campo da ciência, que os espíritos vulgares julgavam haver tocado os seus últimos limites».

Nesta ordem de ideias impunha-se, logicamente, que os cinco elementos não fossem tomados cumulativamente, «em massa», mas separada e analiticamente, por forma que se distingam os progressos de cada um deles «em cada uma das épocas ou fases do seu progressivo desenvolvimento; porquanto, só depois de ter comparado os progressos de cada um deles com o de cada um dos outros é que poderá dar aos seus leitores, e compreender ele mesmo, até que ponto o vagar com que um daqueles elementos progrediu no seu desenvolvimento foi causa de todos os outros serem retardados na sua marcha, ou,... que a abundância sempre crescente de factos, em vez de ilustrar e enriquecer a ciência só servia de torná-la cada dia mais confusa em si mesma, e mais estéril quanto ao número das suas aplicações aos usos práticos da sociedade, que parece deverem ser o último alvo de todos os nossos estudos ».

Estas considerações, escritas no crepúsculo de uma vida longa e digna (1769-1846), são de filósofo, que não de historiador, e de filósofo fiel ao «espírito de sistema» em que fora educado e cujos olhos cansados já não podiam ver a alvorada da admirável atividade histórico--filosófica, que Hegel por então despertara. O seu plano só seria exequível monograficamente, em histórias restritas de problemas ou de ideias; no conjunto, porém, obrigaria a repetições pela consideração autónoma dos «cinco elementos», além de parecer implicar a negação da realidade histórica, de essência temporal, por admitir, paradoxalmente, a constituição da História da Filosofia sem cronologia, isto é, o respeito pela sucessão epocal das ideias, e por instalar o arbítrio na interpretação dos factos, subordinando-os a uma conceção trans-histórica.


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