Evolução da historiografia filosófica em Portugal até fins do século XIX

Não obstante, é de lamentar que Silvestre Pinheiro Ferreira não tivesse aplicado também o seu talento à nossa disciplina, tanto mais que pode legitimamente supor-se que se teria antecipado, germinalmente, no plano, que não na amplitude da realização, à Esquisse d'une classification systématique des doctrines philosophiques, Paris, 1885-86, e à La Philosophie analytique de l'histoire, Paris, 1896 e segs., de Renouvier.

VI. — No próprio ano em que Silvestre Pinheiro Ferreira publicava estas Reflexões decretava-se oficialmente o ensino do ecletismo espiritualista, satisfazendo-se a um tempo opiniões de ordem filosófica e hostilidades de carácter político.

Coerente com a orientação radical, que encontrou nos artigos de Armand Carrel um dos seus principais teóricos, pela audiência que Passos Manuel lhe prestou desde os tempos da emigração em França, o Setembrismo reformou o ensino filosófico liceal, dividindo a antiga cadeira de «Filosofia racional e moral» em duas — «Ideologia, Gramática Geral e Lógica» e «Moral universal» —, e orientando o respetivo ensino de harmonia com os Ideólogos franceses, especialmente Destutt de Tracy  (1754-1836).

A reforma setembrista, tão notável sob vários aspetos, designadamente pela criação dos Liceus e pela orientação do ensino no sentido científico e técnico, estava essencialmente ligada, pelas inovações e pelas tendências, ao regime que a decretara; por isso, não surpreende que a oposição política, encarnada em Costa Cabral, cuja atenção se voltou frequentemente para as ideias de Guizot e para os rompantes de González Bravo, a tivesse revogado e desejasse que o espiritualismo eclético fosse para o Cartismo restaurado o que em França havia sido para a Restauração e para o regime de Luís Filipe.

Nesta ordem de ideias, pela reforma liceal de 20 de Outubro de 1844 (art. 46.°), substituiu o ensino da «Ideologia, Gramática Geral e Lógica » pelo da « Filosofia Racional e Moral », de velha tradição, que remontava a Pombal, e o da « Moral Universal », de ressaibo enciclopedista, pelo dos « Princípios de Direito Natural ».

Com o apoio oficial e com a opinião dos que, como Cunha Rivara, pensavam que o espiritualismo exprimia a «tendência do século », o ecletismo espiritualista, especialmente de Victor Cousin, que Moniz Barreto espirituosamente definiu como « a filosofia do senso comum acompanhada de pormenores biográficos », dominou durante umas décadas, resistindo na hora crítica da reação anti-cabralista (1851-1852).

De modo geral, e muito especialmente sobre o objeto que nos ocupa, a Ideologia não deixou sulco comparável ao do espiritualismo eclético, nem o podia deixar dada a sua carência de sentido histórico.

A influência de Cousin, pelo contrário, se alguma coisa teve de benéfico foi o interesse que suscitou pelo cultivo da História da Filosofia, designadamente entre nós, pois filia-se no pensador francês a proposição do seu estudo no plano do ensino oficial dos Liceus, feita pelo Dr. Manuel dos Santos Pereira Jardim no Relatório e Programa para a Reforma da Filosofia Racional e Moral, (Coimbra, 1851).

Vencida a política cabralista em 1850, Pereira Jardim foi a voz mais esclarecida que nos primeiros tempos da Regeneração se ergueu em defesa da conservação do ensino da «Filosofia Racional e Moral», tornada sinónimo do espiritualismo eclético, que Cousin apresentara como a filosofia da Carta de Luís Filipe, e dos «Princípios de Direito Natural», sustentando ainda a opinião de que o estudo destas cadeiras deveria ser ampliado com «um resumo da História da Filosofia». Por isso, como remate do seu Relatório, ou exposição de ideias, condensou num Programa as sugestões reformadoras, propondo, pelo que ao nosso objeto respeita, a criação no Liceu de Coimbra de «uma cadeira de Filosofia transcendente, compreendendo duas partes distintas: 1.a, a Filosofia da História; 2.a, a História da Filosofia, principalmente a dos séculos XVIII e XIX».

Desenvolvendo a sua opinião pelo que a esta respeita, escrevia: «A História da Filosofia compreenderá as doutrinas das escolas principais; as relações de semelhança e de diferença, que têm entre si as escolas antigas e modernas; e a influência que estas doutrinas tiveram nos séculos em que floresceram; tudo provado com exemplos extraídos da História da Civilização dos povos ».

Embora estas ideias não exprimam, como é óbvio, uma conceção clara da História da Filosofia, refletindo a imprecisão de pensamento peculiar a Victor Cousin, significam, não obstante, o interesse que se atribuía a esta disciplina, e de que são testemunho as teses apresentadas ao Curso Superior de Letras, em 1860, de Joaquim Simões da Silva Ferraz e de D. José de Lacerda da Almada e Lencastre sobre Relações do Ecletismo com a Filosofia Alemã, as de 1863, de Augusto de Sousa Lobo e de J. S. Silva Ferraz sobre as Bases Fundamentais da Filosofia de Descartes e sua influência no desenvolvimento da Filosofia, e a própria História da Filosofia em Portugal (1868) de Lopes Praça, que na « Introdução Geral » acusa a influência de algumas ideias de Cousin.

Em consequência deste sopro alentador, o ensino da História da Filosofia, que vimos ter sido considerado pela reforma pombalina como propedêutica filosófica e apagar-se mais tarde no quadro oficial de estudos, reapareceu de novo, embora fugazmente, volvido um século sobre a publicação dos Estatutos da Universidade, com o sentido de remate, ou complemento, do curso de Filosofia nos Liceus, juntamente com os «princípios elementares de 'Direito Público' e os 'Elementos de Direito Internacional' »Foi esta circunstância que levou A. Ribeiro da Costa e Almeida, professor de Filosofia no Liceu do Porto, a publicar um Resumo da Historia da Filosofia, seguido dos Princípios Elementares do Direito Público e dos Elementos do Direito Internacional para servirem de complemento ao curso de Filosofia dos Liceus (Porto, 1873), de apreciáveis qualidades didáticas e no qual a História da Filosofia é definida como «a história das tentativas que desde os tempos históricos a razão humana tem feito para compreender e explicar o homem, o Universo e Deus».

VII. — A obra, porém, que no derradeiro quartel do século XIX acumulou mais vasta e fina leitura histórico-filosófica e como nenhuma outra exprimiu a conceção dinâmica do pensamento especulativo, foi o Estudo sobre a Civilização da Grécia com que J. M. Latino Coelho (1825-1891) fez preceder a sua versão de A Oração da Coroa, de Demóstenes (Lisboa, 1879, 1884 e 1914). Com ela se afirmou pela primeira vez entre nós o conceito histórico-evolutivo da sucessão temporal dos sistemas filosóficos.

No ano anterior ao da publicação deste livro, o polígrafo Oliveira Martins (1845-1894) discorrera num largo capítulo de O Helenismo e a Civilização Cristã (Lisboa, 1878) acerca de Sócrates, Platão, Aristóteles e dos Estoicos, mas as suas páginas fluentes, se manifestavam a pujança do talento literário e a fogosidade da inteligência, também não escondiam a fragilidade do saber.

Com efeito, Oliveira Martins, para além do defeito inerente à sua propensão natural, mais apta à generalização fulgurante do que à síntese escrupulosa, e à unilateralidade das suas intenções políticas e sociais de reformador, carecia da informação necessária. Demais, pela atitude mental representa até a negação do historiador da Filosofia, pois em vez de procurar penetrar objetiva e equanimemente na índole e no âmbito das diversas conceções filosóficas, assumiu a atitude militante de quem opõe ideias pessoais às de outrem. Por isso, as suas opiniões histórico-filosóficas, além da fragilidade intrínseca, não exprimem rigorosamente a assimilação crítica de pensamentos alheios, mas a ofensiva militante ou apologética.


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