De dificílima e complexa explicação, abundam as mais divergentes interpretações —, ou o mito platónico não fosse medularmente, como disse Victor Brochard, «a expressão da probabilidade» Comporta duas partes, ou se se quiser, desenvolve-se em dois mitos que se completam: o da teoria física da Terra, da qual Aristóteles discutiu alguns assertos na Meteorológica como se fossem hipóteses científicas, em cujo conjunto se pode distinguir uma parte geral, de considerações sobre toda a Terra, e uma parte especial, descritiva e explicativa do interior da Terra e dos fenómenos que nela se passam; e o mito escatológico, no qual se relaciona a teoria física com os modos de existência das almas desencarnadas, sua expiação, metensomatose, (mais exatamente, porventura, que metempsicose), e bem-aventurança.
Há, sem dúvida, no mito físico-cosmológico opiniões que a História da Ciência tem de examinar, e tem examinado, mas no conjunto domina indiscutivelmente o carácter simbólico, pois se nos afigura exato o juízo de Robin ao afirmar que «o objetivo de Platão foi o de conciliar com certos dados cosmológicos a conceção finalista do Universo que ele criara, e as exigências moram que, no seu pensamento, se não separavam desta conceção.
«O seu ponto de partida foi... que os maus devem expiar as suas maldades e os bons, receber a recompensa da sua virtude, o que supõe a sobrevivência das almas A questão está, pois, em saber, como pode ser concebida com verosimilhança a organização física do Mundo para que este duplo princípio possa ter satisfação.
«Ora tudo isto era tão importante para Platão que não deve ver-se neste trecho nem a diversão frívola, nem a concessão às crenças populares, mas como dirá mais tarde no Timeu, a recreação do filósofo, que assim descansa da contemplação das puras Ideias» (Not. cit., LXVI).
Com o mito final, termina a justificação da crença de Sócrates e como que se remata arquitetonicamente o seu pensamento, que sendo inicialmente, com os primeiros assuntos do diálogo, teoria do ser e do saber, se terminou, embora miticamente, em teoria do Mundo e da vida.
Com o cair da tarde, chegou a hora em que o dever do carcereiro teve de pôr termo à conversação do Filósofo para que o cidadão expiasse no cumprimento da sentença a audácia de haver transposto e ensinado a transpor os limites socialmente consentidos à dúvida. O Homem e o Filósofo receberam-na de corpo lavado e de ânimo tranquilo, porque ao morrer, Sócrates sabia, pela crença que pressente e pela razão que esclarece, que só a purificação (catharsis) intelectual e moral, isto é, o abandono do sensível e das opiniões que se geram da união passageira da alma ao corpo, desvenda o caminho da vida imortal mediante a aplicação do pensamento à inquirição e sua integração na verdade pura das Ideias. A Filosofia, o pensamento do Inteligível, eterno e imutável, e a Imortalidade, fundem-se num só anelo e como que num só objeto.
É nesta convicção profunda, serena, imperturbável, que Sócrates bebe a taça de veneno, com a qual os juízes quiseram condenar a sua consciência dissidente, e na qual o Sages, com o derradeiro ato da sua cidadania respeitadora das leis, encontrava, afinal, o caminho antecipado da libertação e a maneira incomparável de doutrinar o mais difícil dos ensinamentos, que é o do acordo da teoria e da conduta, da Razão e da Vida.
Tal é, sumária e esquematicamente, a estrutura do Fédon, vejamos agora, ainda mais sumariamente, alguns dos problemas que ele suscita sob o ponto de vista histórico-filosófico, designadamente sobre a autenticidade do texto, a historicidade do relato e o sentido da conceção da imortalidade.
A autenticidade do Fédon é unanimemente reconhecida. Conta-se entre os oito (ou nove) diálogos citados ou subentendidos por Aristóteles e entre os títulos dos quinze que Diógenes Laércio referiu; por isso, além de outras razões, de crítica externa e interna, não tem consistência a dúvida que se atribuiu a Panécio de Rodes, filósofo estoico do segundo século da nossa era, tanto mais que ela aparece tardiamente e incide sobre o valor dos argumentos relativos à imortalidade da alma, que não propriamente sobre a fidedignidade da autoria.
Não há, pois, razão alguma que aconselhe a colocação do Fédon no grupo dos diálogos apócrifos ou suspeitos de haverem saído da pena de Platão; porém as dúvidas e as dificuldades surgem, para não mais desaparecerem, quando se pretende determinar a posição que este diálogo ocupa no conjunto dos escritos platónicos, comprovar a historicidade do relato e estabelecer com clareza a correlação das conceções nele expostas com a personalidade de Sócrates e com a filosofia platónica.
Sobre estes e outros temas, sem contar os de ordem filológica e de crítica externa, abundam os pontos de vista e as interpretações mais ou menos divergentes. Levaria longe a notícia e seriação de tão numerosas opiniões e juízos; por isso, indicaremos apenas, e sumariamente, o que se nos afigura primacial relativamente à posição e ao esclarecimento de alguns destes problemas.
A inconstantia Platonis, para empregar a expressão de Cícero no De natura deorum (I, 12) tão sugestiva e adequada à divergência de opiniões que os diálogos apresentam, assim como a carência de abundantes e sólidos informes contemporâneos e a ausência de firmes coordenadas para a ordenação metódica dos escritos e do pensamento de Platão, fizeram do Platonismo uma das conceções filosóficas de mais difícil explicação. Nada se furta à garra da dúvida: a obra, no conjunto do seu encadeamento como na singularidade das suas partes, e a filosofia, tanto sobre o ponto de partida como na estrutura, na expressão e no desiderato supremo.
O Fédon não escapa ao signo da incerteza, a começar logo nos problemas preliminares da data no tempo e da situação na sequência dos escritos platónicos.
Não é possível, com efeito, dar uma solução terminante a estes problemas.
Nem direta, nem indiretamente, pela referência a qualquer acontecimento de cronologia conhecida, pode datar-se temporalmente o Fédon. Pode pensar-se que Platão o escreveu pouco depois da morte de Sócrates, ocorrida talvez passado um mês sobre a condenação, em 399 a. C. Ë uma hipótese que teve defensores e à qual parece emprestar alguma verosimilhança a circunstância do relato se ter feito longe de Atenas, em Flionte, no sul do Peloponeso, na presença de vários amigos e discípulos do Filósofo, fugidos porventura à reação política que é de crer se houvesse desencadeado sobre a roda socrática consecutivamente ao julgamento de Sócrates.
A crítica mais recente, porém, baseada na comparação estilométrica e no confronto das conceções do Fédon com outros diálogos, inclina-se para uma data posterior. Platão tê-lo-ia redigido depois de fundada a Academia (387) e de haver ensinado a teoria das Ideias, chegando Lutoslawski a pensar que foi escrito cinca 384-383 (ob. cit., p. 226).
Pelo estilo e pelas conceções, é indubitavelmente uma obra da maturidade, de uma época em que Platão já havia firmado alguns pontos fundamentais da sua filosofia e dominava com irresistível sortilégio os admiráveis recursos dos seus dotes literários. Como até então, Sócrates continua a ser o mestre genial e o homem incomparável pelas virtudes e pela justeza dos pensamentos, mas o Sócrates do Fédon é um filósofo diferente do dos diálogos da mocidade de Platão, mais subtil e mais profundo, e um dialético que vai mais depressa ao âmago das questões, sem os rodeios fatigantes das estiradas conversações dos primeiros diálogos.