Introdução ao Fédon de Platão

Com a Apologia perante o tribunal de Atenas, com o Crito, ou a aceitação cívica da condenação, e com o Fédon, ou a execução da sentença, Platão dramatizou os lances capitais do processo de Sócrates. A sequência dos acontecimentos não implica, porém, que estas três obras se houvessem sucedido com idêntica prontidão. A Apologia e o Crito são manifestamente obras da juventude, de franco carácter apologético, sem dimensões metafísicas; o Fédon, porém, tem os rasgos de urna obra doutrinária, e tanto pela estrutura como pela movimentação do diálogo só poderia ter sido escrito por quem, na ascensão da carreira propriamente literária, houvesse ultrapassado a simplicidade da composição na qual a conversação decorre apenas entre dois interlocutores.

O Fédon apresenta-se, assim, com as feições de uma obra da maturidade e da quadra em que o filósofo, na plena posse dos seus geniais recursos, encara de frente alguns problemas metafísicos que até então deixara como que em parêntesis.

Em que altura da vida o escreveu Platão, ou por outras palavras, mais precisas, que posição ocupa este diálogo na ordem da composição dos demais escritos platónicos?

Responder com exatidão seria resolver a complexa e dificílima «questão platónica», ou seja o esclarecimento da autenticidade e da sucessão cronológica da obra de Platão.

Como em relação à data no tempo, a resposta a esta pergunta, embora seja menos conjetura! Não alcança todavia o grau da certeza—, nem poderá nunca alcançá-la, porque como escreveu René Schaerer, «é impossível ligar os Diálogos uns aos outros como parágrafos de uma demonstração ou como os capítulos do Discurso do Método. Completam-se à maneira das Odes de Píndaro, das Tragédias de Eurípedes ou das Sinfonias de Beethoven. As analogias que os ligam não estão na letra, mas no espírito, isto é, na alma do autor».

Cumpre, não obstante, atentar no problema, o qual se formula especialmente quanto à posição do Fédon em relação ao Ménon, ao Banquete, à República e ao Fedro.

A anterioridade do Ménon é hoje quase unanimemente aceita, não faltando quem veja em certo passo do Fédon a alusão direta à teoria da reminiscência (anamnesis) do Ménon. A exposição que desta teoria faz o Fédon é, como dissemos, diversa da daquele diálogo; no entanto a relação das duas exposições é diferentemente julgada, pois se há quem, como é mais geral, considere a do Fédon como o desenvolvimento em profundidade da conceção do Ménon, também há, como Perceval Frutiger, quem considere que Platão expôs a teoria nos dois diálogos em planos diferentes: no Ménon, miticamente, no Fédon, dialeticamente.

O Banquete já dá margem a mais largas dúvidas. Natorp considerou-o posterior ao Fédon, pois viu neste diálogo a consequência imediata da influência do Pitagorismo da Itália do Sul e da Sicília, aquando da primeira viagem de Platão, e a hesitação do Filósofo relativamente à imanência ou transcendência das Ideias, a qual já se não encontra no Banquete, que a seu juízo exprime com nitidez a conceção imanentista.

A despeito do crédito que a este juízo cronológico emprestou a autoridade imensa de Wilamowitz-Moellendorff, que sintetizou a sua opinião na frase — Das Komplement des Phaidon ist das Simposion, é a tese contrária que hoje desfruta maior sufrágio, havendo ainda quem admita a hipótese de terem sido escritos pelo mesmo ano, circa 385.

Com efeito, Teichmüller, Lutoslawski, Stefanini e outros, com razões históricas, estilométricas e de crítica interna, defendem a tese da prioridade do Banquete como a mais plausível e de dificuldades relativamente menores.

Baste, para o efeito, a significativa circunstância do Banquete apresentar a teoria das Ideias como uma conceção recentíssima, frágil e ainda sem grande consistência, cujos traços gerais Sócrates ouve da boca de Diotima, com evidente esforço de atenção.

Dir-se-ia que Platão acabara de descobrir o que viria a ser a expressão máxima do seu pensamento metafísico; no Fédon, pelo contrário, a teoria tem já feições bem vincadas, apresenta-se como explicação por assim dizer familiar, e desenvolve-se com disposição didática, própria de quem ensinou e debateu o assunto com sucessivas turmas de alunos.

Demais, no Banquete, Platão é o filósofo do Eros, cuja alma se deixou contagiar da exaltação do amor; no Fédon, o dialético que procurou justificar a libertação do fardo da existência e quis que a alma se arrebatasse na alegre convicção de alcançar a vida mais valiosa.

A posterioridade do Fédon em relação ao Banquete é, assim, a hipótese mais consistente; porém, relativamente à República, a hipótese mais plausível é a da anterioridade do Fédon.

A República é a obra em que Platão condensou, por assim dizer, o seu pensamento de filósofo, de pedagogo e de político. Supõe, de certo modo, a reflexão anterior de numerosos diálogos, o que aliás não significa que Platão a houvesse redigido continuadamente, da primeira à última linha.

Pelo contrário. É hoje dominante a opinião de que os dez livros que a constituem foram escritos em épocas diferentes com largos intervalos, considerando-se o livro I como obra da juventude, contemporâneo, porventura, do Hipias Maior, e os livros IX e X como obras da plena maturidade, em cujas formas verbais a estilometria encontra peculiaridades que não é crível tivessem saído da mão que escrevera com o estilo das primeiras obras. Distanciados no tempo, os livros da República também se distinguem, de algum modo, pelo assunto, apesar da continuidade que Platão lhe quis dar; por isso, a comparação com o Fédon só pode fazer-se eficazmente com os livros que lhe são afins pela matéria, e esses livros são os VI e VII nos quais Platão também expôs a teoria das Ideias.

As hipóteses admissíveis são duas: a da contemporaneidade das redações do Fédon e destes livros, e a da posterioridade da redação dos livros da República, embora talvez com pequeno intervalo. Em ambas as obras a teoria das Ideias tem o carácter de urna exposição metódica; no entanto, a análise do vocabulário e a comparação das expressões e das teorias lógicas, que Lutoslawski levou a cabo tão metódica e penetrantemente inclinam fortemente o espírito para a redação posterior dos dois livros da República.

Seja ou não verosímil esta opinião, um facto no entanto se pode considerar como certo: o do Fédon pertencer ao grupo dos diálogos construtivos, nos quais a teoria das Ideias é indicada ou exposta como fundamento da gnosiologia, da estética, da política, da ética, e da metafísica, designadamente o Banquete (ou do amor), o Fedro (ou da retórica e da natureza da alma em relação às ideias) e os livros II-X da República (ou do Estado ideal e da essência da Filosofia).

O estabelecimento desta posição do Fédon na sucessão dos escritos platónicos permite, dentre outras consequências, que se tente a reconstituição do quadro fundamental das ideias de Platão pela época em que o redigiu.


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