Introdução ao Fédon de Platão

Responder importa o exame de uma das mais árduas dificuldades do Fédon, visto Platão, como observou Grote, ter no pensamento a alma ora como individualização, ora como universal», além de que a inquirição que lhe é própria depende também de outra dificuldade mais complexa, que é a da interpretação da teoria das Ideias.

É este o problema nuclear do Platonismo, acerca do qual, de Aristóteles aos nossos dias, se tem exercitado infatigavelmente a atividade criadora de metafísicos e de teólogos, o comentário de parafrastas, o espírito crítico de exegetas, e o zelo meticuloso da erudição filológica e histórica. Por ele se deve começar mas porque é de imensa vastidão, pelos juízos e perspetivas que o labor de séculos acumulou, cumpre delimitar o assunto, que vem a ser, fundamentalmente, a determinação da posição do homem individual em relação ao sentido que as Ideias têm no Fédon ou podem ter, em função da interpretação global da teoria. Há, como é óbvio, alguns outros problemas, designadamente o de saber como é possível que a alma, considerada como unidade meta-empírica, simples e imortal, se dê no Tempo em sucessivas transmigrações ou incarnações corpóreas individuais, mas este problema, como os demais, está intimamente dependente daquele outro, que se nos afigura nuclear e primacial.

Acodem desde logo as soluções antagónicas derivadas das interpretações monádica, imanentista ou panteísta, e transcendentalista.

Quem pense que para Platão as Ideias têm a função que Leibniz atribuiu às mónadas e considere, portanto, que a um e outro filósofo se impôs o problema da harmonia do individual com o universal, da unidade com a variedade, é logicamente levado a interpretá-las monadicamente, como essências atómicas, autónomas e irredutíveis, cerradas em si próprias.

Há um passo do Filebo (15, B) que de algum modo parece autorizar esta interpretação monádica e pluralista, que Herbart sustentou, e se este é o sentido da teoria no Fédon, é evidente que a imortalidade que Platão teve em vista neste diálogo foi a imortalidade pessoal, dado que a cada indivíduo, como mónada própria e irredutível, corresponde uma alma.

Um passo isolado, como o do Filebo, não é, porém, de per si bastante para invalidar o que se apresenta com maior constância; e além disto, o símile com a monadologia de Leibniz conduz ao equívoco de deformar o Platonismo e em especial a noção de alma, que embora se apresente no Fédon como unidade simples não é considerada como ente absoluto, independente no Universo e sem comunicação com ele. Ao contrário da mónada leibniziana a alma platónica só se afirma, purifica e liberta na medida em que abre janelas para o que não é corpóreo e se deixa penetrar da imaterialidade do mundo espiritual.

A interpretação imanentista é também, como a interpretação monádica, embora em grau menor, o resultado da subordinação do Platonismo a pontos de vista que lhe são alheios.

Assim, Giordano Bruno, com a fogosa emoção com que quase sempre deu largas à intensidade do seu sentido cósmico, pensou que a imortalidade segundo Platão só se dava na «unità specifica» da essência humana, que não nos indivíduos que nascem e morrem; e assim também Schopenhauer, ao escrever no Mundo como Vontade e como Representação, que as Ideias platónicas são «os graus determinados e fixos da objetivação da vontade enquanto esta é coisa em si e como tal alheia à pluralidade» (II, § 25), ou por outras palavras, «as espécies definidas, as formas e as propriedades originais e imutáveis de todos os corpos naturais, inorgânicos como orgânicos, ou ainda as forças gerais que se manifestam conformemente às leis da Natureza» (livro III, § 30).

É evidente o contraste com a conceção monádica, assim como a respetiva implicação relativamente à imortalidade; porém, o que nestes filósofos se apresenta, como é de crer, com as feições de uma apreensão intuitiva, veio a ser em Hegel a consequência de uma interpretação panteísta da teoria das Ideias e em Teichmüller o resultado de laboriosas e porfiadas investigações histórico-críticas.

Hegel, nas Lições de História da Filosofia, publicadas postumamente (1833), tão originais pelas inovações da construção e pela fecundidade e amplitude dos pontos de vista que rasgou, viu a teoria platónica à luz da sua própria filosofia; consequentemente, onde o atomismo monádico acentuara o individual, ele acentua o Universo.

Em seu juízo, a Ideia platónica não deve ser concebida como transcendental e forânea, antes como expressão do mundo real, isto é, como género atuante que encontra na vida a sua substancialização e concreção. Entre a Ideia e a realidade há, pois, uma relação de imanência.

Cingindo de mais perto o assunto no Fédon, que é o diálogo em que importa considerá-lo, e tirando a consequência que da interpretação imanentista resulta para o sentido da imortalidade, Hegel não hesitou em afirmar que os argumentos da reminiscência e da simplicidade não provam a imortalidade da alma como mónada e que o repúdio da conceção da alma como harmonia do corpo significa que Platão quis dizer que a natureza anímica não é individual e sensível, mas universal. Como escreve Chiappelli (ob. cit., 22), «para Hegel, a Ideia platónica, sendo a verdadeira e imanente realidade do Mundo, é sob outro aspeto o produto do espírito como atividade especulativa como Universal, e é nesta atividade que o espírito encontra a sua imortalidade. Pelo que a alma, que é uma forma individual, não pode aspirar ao privilégio da imortalidade, se esta é a vida eterna do espírito».

Teichmüller deu a esta interpretação a fundamentação histórico--crítica de análise minuciosa de textos, que o génio prodigiosamente generalizador de Hegel lhe não podia dar.

Com penetrante saber, procurou estabelecer, na síntese de Chiappelli, que «a Ideia platónica é o que há de imutável no Mundo, a verdadeira determinação das coisas, a lei que o governa... Opõe-se-lhe o movimento desordenado, ora maior, ora menor, sem medida e sem determinação de modo. As Ideias são eternas, o Mundo pelo contrário está no tempo; e no entanto este é a imagem daquele exemplar, e é necessariamente determinado, de outro modo não poderia existir. Por isso, «o Mundo não pode crescer nem minguar, e é sempre igual a si mesmo, não pela identidade numérica dos átomos, mas pela determinação essencial, isto é, pela identidade da Ideia».

«O Mundo, o devir é, consequentemente, a mistão da Ideia e da matéria, do que participa daquilo a que se participa; é a unidade do fluxo heraclitiano e do ser eleático, do diverso e do idêntico, do movimento e do repouso. De um lado, o devir cíclico, ou o círculo dos fenómenos, em que a morte de um segundo, diz Fédon, é a vida do outro, e o oposto nasce no seio do oposto. É nesta permanência e identidade essencial do Mundo que, para Teichmüller, consiste a verdadeira função da Ideia Platónica» (ob. cit., 27).

Sendo assim, a imortalidade da alma individual é inconciliável com o Platonismo. Como qualquer outra realidade, a alma dos indivíduos é composta de essência (ousia) e de devir (génesis), e portanto é imortal ou esta lhe é presente (parousia), e é mortal na parte propriamente individual, porque esta começou num momento do tempo, nasceu com o corpo e é, portanto, um composto. «A imortalidade individual, resume ainda Chiappelli, não pode ser deduzida do princípio ideal da alma, visto este ser Uno, nem contém em si multiplicidade alguma; e onde se crê achar a imortalidade individual, acha-se em vez dela a eternidade da ideia... Deste modo, os princípios platónicos opõem-se (segundo Teichmüller) à imortalidade individual, a ponto de poder dizer-se resolutamente que «o individual não é eterno e que os princípios eternos não são individuais»... Em suma, «para Platão, cada indivíduo está sempre em devir e nunca é, encontrando-se tão longe do conceito da imortalidade pessoal da alma quanto dele estão afastados Espinosa, Hegel ou o materialismo» (oh. cit., 31).


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