Introdução ao Fédon de Platão

Para Platão, as almas individuais seriam, pois, a manifestação passageira e puramente fenoménica da Ideia impessoal e eterna.

Esta interpretação, que se apresentou com a robustez da argumentação e a firmeza de algumas bases, encontrou adversários à altura do seu expositor, bastando citar o gigantesco historiador da Filosofia dos Gregos, Edouard Zeller, e, sobretudo, o insigne Alessandro Chiappelli, com a perdurável monografia Della interpretazione panteística di Platone, modelo de erudição e de penetração crítica, além de outros que só incidentalmente dela se ocuparam, como o investigador que mais intimamente devassou os mistérios helénicos do culto da alma e da crença na imortalidade, Erwin Rhode, no famoso livro Psyché.

Com a notável discussão pôs-se a claro uma contradição intrínseca do Platonismo, a saber, o antagonismo da noção de parousia, isto é, da explicação da existência do ser das coisas pela presença das Ideias, com a noção de realidade própria das coisas, visto que a teoria das Ideias tem precisamente a sua motivação na dualidade do sensível e do inteligível, do mutável e do imutável, do fenómeno e da ideia.

A parousia fundamenta a interpretação imanentista ou panteísta, e portanto a impossibilidade lógica da imortalidade das almas individuais — pelo que Teichmüller foi levado a dizer que as referências de Platão à imortalidade tinham carácter mítico e obedeciam a intenções protrépticas, isto é, de doutrinação moral para o povo mas sem valor intrínseco.

A noção de realidade inerente ao sensível, pelo contrário, conduz à interpretação dualista ou transcendentalista das Ideias, na qual a imortalidade das almas encontra justificação teórica.

O debate pode ser considerado sob o ponto de vista geral, em função da totalidade dos escritos platónicos, e sob o ponto de vista particular do Fédon, isto é, da feição que a teoria das Ideias apresenta neste diálogo e da conceção da imortalidade subjacente à conversação de Sócrates.

A exposição do assunto sob o primeiro aspeto importava o exame completivo da teoria das Ideias, o qual nos afastaria do nosso objetivo; por isso, consideraremos apenas o segundo aspeto.

Como dissemos acima, o Fédon não apresenta uma posição terminante e clara quanto ao problema das relações do sensível e do inteligível. Daí a possibilidade de nele se encontrar um panteísmo como que latente, ou talvez mais exatamente irradiante, visto as ideias poderem ser consideradas como essências germinantes das aparições sensíveis; e pode também encontrar-se o transcendentalismo, pois as sucessivas transmigrações implicam a existência das almas independente dos corpos em que podem encarnar-se.

Se deixou este e outros problemas na obscuridade, Platão estabeleceu, no entanto, com clareza o dualismo irredutível do sensível e do inteligível, designadamente com a enumeração das notas características das Ideias, que no Fédon são indicadas como essências sempre idênticas a si mesmas, imutáveis, invisíveis e só apreensíveis pela razão (hic., pp. 46-7).

A afirmação da existência ôntica do «imaterial», isto é, das Ideias (eidos, palavra que aparece pela primeira vez no Fédon), independente da realidade material sensível, constitui precisamente um dos geniais descobrimentos de Platão. Até ao idealismo platónico, como testemunham os escritos hipocráticos, as ideias eram concebidas corporeamente, isto é, as ideias das qualidades dos corpos eram consideradas materialmente como a água e os outros elementos; por isso, Taylor não hesitou em dizer que um dos méritos do Fédon consiste precisamente no descobrimento da imaterialidade e em ter aplicado a noção de ideia ao Bem e ao Belo.

Tudo isto inclina fortemente para o dualismo da alma e do corpo e para a conceção transcendentalista das Ideias em relação ao espírito, e a inclinação volve-se em certeza, pois, como observou Chiappelli, o Fédon distingue claramente a alma da ideia de vida a que ela participa.É de crer que Platão se não deteve neste assunto com a demora que hoje desejaríamos porque o intento do Fédon não consistia em mostrar como o sensível é explicado pelo inteligível. O seu objetivo não era epistemológico nem mesmo ontológico. A par do retrato moral de Sócrates no derradeiro dia de vida, talvez exageradamente encomiástico, Platão quis mostrar como é possível fundamentar racionalmente a crença na imortalidade; por isso, disse da teoria das Ideias e do conhecimento que delas tem a alma apenas o que julgou necessário ao propósito. Disse porém o bastante para levar ao convencimento de que a teoria apoiava a imortalidade das almas individuais, tanto mais que, como observou Rhode, Platão fala sempre «de imortalidade, isto é, da eternidade da alma individual, e em parte alguma da imperecibilidade da «natureza universal» da alma»— o que evidentemente afasta do Platonismo a conceção imanentista ou panteísta das Ideias.

À luz desta interpretação transcendentalista, a imortalidade das almas individuais torna-se compatível com o idealismo platónico; e por conseguinte é com este sentido que deve ler-se o discutido passo em que Cebes reconhece a imperecibilidade da alma:

«Quando a morte se aproxima do homem, segundo parece, morre só a que nele há de mortal; mas a parte imortal, essa retira-se, ilesa à destruição, cedendo o lugar à morte.

— É claro.

— Com toda a certeza, pois ó Cebes, concluiu Sócrates, a alma é imortal e imperecível; e as nossas almas subsistirão realmente no Hades» (Hic., p. 100).

Para além da fundamentação epistemológica e ontológica, podem ainda encontrar-se no Fédon outras razões, mais de ordem moral que dialética, designadamente no prelibar da morte que a Filosofia proporciona à alma, e, apesar de enleadas no mito, nas alusões às sanções futuras, só compatíveis com a imortalidade das almas individuais.

Imortalidade das almas individuais, ou imortalidade das almas pessoais?

É o último tema que cumpre examinar e cuja interrogação só na aparência especiosa, assenta, como é óbvio, na distinção dos conceitos de indivíduo e de pessoa. O problema implica apurar o que da alma Platão considerava imortal e se a sua noção de alma individual tem a densidade ética da nossa atual noção de pessoa.

Dirigindo-se aos juízes que o absolveram, Sócrates disse-lhes que a morte ou é um sono sem sonhos e sem qualquer sensação, ou é o trânsito deste sítio para outro em que o justo conviverá beatificamente com os que outrora foram justos. A disjuntiva exprime, evidentemente, a vacilação da crença e da razão, visto colocar a imortalidade no campo do possível que não no da realidade.

Qualquer que seja a amplitude que se confira ao contraste da Apologia e do Fédon, ou por outras palavras, do Sócrates que admite a possibilidade da imortalidade, do Sócrates que crê e está convencido racionalmente de que as almas humanas são imortais, tudo leva a crer que Platão não levou tão longe a dúvida como o seu Mestre, por haver sentido com vigor o enlevo místico que deu alento às aspirações purificadoras da alma no culto de Diónisos, ao ascetismo das seitas órficas e à crença esotérica e disciplina congregante do Pitagorismo.


?>
Vamos corrigir esse problema