Introdução ao Fédon de Platão

Como reiteradamente acentuámos, o Fédon partiu do sentimento da imortalidade mas concentrou o empenho metafísico em lhe dar certeza racional. No entanto, uma coisa é mostrar a realidade ôntica da imortalidade, outra especificar o que há de imortal na alma. Por outras palavras: o que sobrevive da alma?

Com a teoria da alma tripartita, de feições algo indecisas entre o mito e a objetividade, exposta na República, no Fedro e no Timeu, o problema embora apresente obscuridades não oferece as dificuldades do Fédon.

É que nenhuma frase deste diálogo abre o caminho de qualquer resposta textual, e por outro lado, Platão, concebendo a alma como ente simples e uno, tornou eminentemente difícil determinar com algum rigor o que a seu juízo persistia quando a alma se despojava de apetites corpóreos e se desprendia das ligações com a perceção do múltiplo e do que incessantemente flui e muda. Disse-nos, ou mais exatamente, rasgou a perspetiva de pensarmos que é concebível que a alma se desprenda do corpo e persista fora do mundo sensível, para além da duração, sem que a sua entidade se afogue ou perca na Ideia universal, mas nada disto responde à questão de saber o que dela sobrevive após a morte do corpo.

À falta de expressões precisas, a resposta só pode encontrar-se na correlação da pergunta com o que no Fédon é metafisicamente estrutural, e a esta luz cremos que cumpre baseá-la no segundo e no terceiro argumento da imortalidade.

A reminiscência (anamnesis) que é, como vimos, o nervo do segundo argumento, exerce no Platonismo duas funções diversas: uma epistemológica, outra psicológica. Por aquela, justifica a possibilidade do Saber, pois como já foi dito (e controvertido), Platão verteu na reminiscência o problema que Kant mais tarde explicitaria genialmente na Crítica da Razão Pura com a pergunta acerca da possibilidade dos juízos sintéticos a priori. Esta função não é para ser considerada aqui. Só a função psicológica importa, porquanto Platão deduz da reminiscência, como vimos, que as almas individuais são entidades pré-existentes à sua ligação aos corpos, nos quais mantêm a sua entidade peculiar, ao contrário do Timeu, onde a diversidade delas não é pré-existente, por se verificar depois da ligação ao corpo, com o estímulo da diversidade do sensível.

A natureza da alma não entra propriamente na esfera probatória da reminiscência; não obstante inculca que é a parte eterna da alma que torna possível a Ciência, e essa zona eterna da alma é, em virtude do princípio de que o semelhante só pelo semelhante pode ser conhecido, o que nela é afim à eternidade das Ideias.

O que com a reminiscência é hipótese como que se volve em certeza com o terceiro argumento, o qual, como vimos, estabelece a imperecibilidade da alma com base na inteligibilidade. As almas são imortais porque conhecem as Ideias puras que são eternas.

Por isso, em face da clara identificação da alma com a inteligência, e da inteligência com o objeto inteligível, cremos ser legítimo concluir-se com Schleiermacher, na introdução à sua tradução do Fédon, que o que é imortal na alma é o conhecimento.

É esta interpretação que se nos afigura mais coerente, mas cuja consistência não tolhe de maneira alguma o caminho de outras explicações designadamente a que se firme na conceção da alma como princípio vital.

Um ponto, no entanto, é seguro, qualquer que seja a determinação da zona imortal da alma: é que Platão só teve em vista a imortalidade do indivíduo, e não a da pessoa humana. Viu no homem a individualidade cognoscente digna de ser tirada metafisicamente ao devir das concreções perecíveis do mundo físico, não a Pessoa, que cumpre libertar das potências antiespirituais e vindicar como valor autónomo.

A mais bela palavra do vocabulário parece não ter existido na linguagem grega, e se existiu, o seu conceito não alcançou a densidade ética que a nossa civilização lhe infundiu.

O Fédon, a par de outros diálogos, transmite com vibração comunicativa o amor da evasão para o Bem, ou mais exatamente para a Ideia. É um dos atrativos maiores do Platonismo, pelo menos para o europeu sensível ao enlevo espiritual quê a Renascença despertou; no entanto, no caminho dos seus geniais descobrimentos, Platão não deparou com a noção e ainda menos com a Ideia de Pessoa.

O seu pensamento jamais descansou na revisão crítica das próprias ideias e na inquirição de novos problemas, ergueu altíssimo o sol da Justiça, amou entranhadamente Atenas, cujos desvarios morais e políticos foram quiçá dos impulsos mais incitantes da sua reflexão, exaltou o ideal do desenvolvimento harmonioso do Homem, rasgou sendas e assinalou metas sem as quais teria sido diverso o pensar de Aristóteles, de Plotino, de Santo Agostinho, e talvez não tivesse sido possível aquele anseio de superação que levou o homem da Renascença à gesta dos heroísmos, ao enlevo da Beleza, e também ao sudário das abjeções. Treinando o espírito na demanda e na contemplação das Ideias eternas e imutáveis, Platão preparou as inteligências e os corações para os anelos da Cidade Ideal e do que mais tarde se chamará o Reino de Deus.             

Com ter visto tanto, tão largo e tão fundo, os seus olhos, contudo, não repararam na Pessoa humana, quer como Ideia, quer como realidade concreta, porque a sua mente dialética não ultrapassou a noção de indivíduo, já como parcela da totalidade, cuja noética o isenta e salva metafisicamente, já como elemento da Cidade, na qual subsumiu o cidadão, e fora da qual não concebeu a possibilidade da reforma moral das consciências.         

A revelação do supremo valor humano, que cumpre manter e salvar através de todos os possíveis naufrágios, explosões e derrocadas, veio depois; pertence à mensagem do Cristianismo.          

Coimbra, Natal de 1947.              


?>
Vamos corrigir esse problema