Introdução ao Fédon de Platão

As ideias não são, pois, criação original da mente de cada um nem tão-pouco assimilação de elaborações da mente de outrem; são realidades pré-existentes ao espírito, que este contemplara anteriormente e que a sensação atual desperta da obscuridade em que jaziam para as trazer ao plano da consciência clara. Saber é, pois, recordar, por forma que a apreensão da realidade sensível tem por função suscitar a revivescência das realidades inteligíveis contempladas anteriormente à encarnação da existência corpórea.

Este argumento, como acima dissemos, tem por objeto a demonstração da pré-existência da alma, deixando, em rigor, fora da sua esfera probatória a sobrevivência dela depois da morte.

Prova a transcendência da alma em relação ao corpo sensível, prova que ela é espiritual, mas não prova que ela possa perpetuar-se na sucessão de gerações. Por isso, Sócrates diz no final desta argumentação, respondendo a Símias, que é necessário combinar esta prova da reminiscência com a dos contrários para que fique estabelecida a pré--existência e sobrevivência da alma — ou por outras palavras, que a alma passe da duração eterna à perpetuidade da existência cíclica.

Observou Rodier  «ser verosímil que para Platão os dois argumentos constituíssem um só, e que este fora o sentido que lhes quis dar. » É, porém, difícil de admitir que tivesse considerado esta união como concludente, porquanto, se o primeiro não prova que o que passa do estado a que chamamos vida ao estado a que chamamos morte, e reciprocamente, seja coisa diferente do corpo, o segundo não prova tão-pouco que o pensamento não seja uma propriedade da matéria, sem dúvida mais duradoira que o organismo corpóreo no qual reside temporariamente, mas, não obstante, submetida também ao devir e à destruição. Por consequência, a demonstração é incompleta, e o próprio Platão teve cuidado de o indicar, porque Símias e mesmo Cebes, cuja penetração é louvada por Sócrates, não estão ainda convencidos de que a alma se não possa consumir e dissipar.

«Para completar a prova cumpre, pois, estabelecer que a alma, que numa existência anterior conheceu os seres inteligíveis, é da mesma natureza que eles e, por consequência, é como eles simples e incorpórea. Tal é o objeto do terceiro argumento».

O terceiro argumento assenta, com efeito, na afirmação da realidade ôntica do puro inteligível —, ou mais explicitamente, na prova de que o ser próprio do que se chama « dissipar » ou perecer é composto, e que o ser da alma é o ser indissolúvel e sempre idêntico a si mesmo das realidades inteligíveis.

A argumentação desenvolve-se, por assim dizer, em dois tempos: no primeiro, pretende provar que a alma é simples, no segundo, que a alma, que conhece as ideias simples e imperecíveis, é como elas também imperecível.

A demonstração da primeira parte assenta na discriminação de duas espécies de seres: os compostos, que estão sujeitos à lei da mudança e à decomposição, são visíveis, isto é, percetíveis pelos sentidos, e perecíveis; e os simples, que são imutáveis, imperecíveis, invisíveis aos sentidos e de essência inteligível. A alma pertence ontologicamente à segunda espécie; o seu ser, como o dos puros conceitos de igualdade, de beleza, de justiça, etc., não é apreensível pelos sentidos.

Como é óbvio, o argumento parte do princípio de que a nossa existência terrena consiste na união da alma, que é invisível, ao corpo, que pertence à ordem dos seres visíveis, e que a morte significa a decomposição de um composto. Ora o que é simples escapa por natureza à decomposição, e portanto a alma, que é simples, persiste no seu ser imperecível.

Com a afirmação de que a alma não pertence à ordem dos seres que se «dissipam» dir-se-ia que o esclarecimento do assunto não fizera grande progresso, mantendo-se a posição inicial do diálogo.

A certa luz, assim parece; porém a outra luz, a demonstração da simplicidade da alma descobre o verdadeiro nervo do argumento, cuja fibra é epistemológica e não puramente ontológica.

Ë que para Platão, neste ponto de acordo com Empédocles, a simplicidade da alma importa uma teoria do conhecimento segundo a qual o espírito que conhece e o objeto conhecido têm a mesma essência comum; por consequência, sendo as ideias puras imperecíveis, a alma que as conhece é também imperecível.

O raciocínio assenta no princípio de que o semelhante só pelo semelhante pode ser conhecido o que implica admitir-se que o Inteligível supõe a inteligência que o apreende, o objeto que é conhecido o espírito que o conhece, a ideia o respetivo ideato. Por isso Sócrates diz a Cebes que «a alma tem grande semelhança com o divino, imortal, inteligível, uniforme, indissolúvel e que permanece sempre o mesmo e se comporta da mesma maneira» (hic., p. 49). Se assim não fosse, isto é, se a alma não tivesse a faculdade de apreender e de representar as ideias puras, a ciência seria inexplicável.

Escreveu Rodier, (art. cit., pp. 49-50) que este «argumento é em si próprio perfeitamente viável e, na verdade, a primeira prova rigorosa que se encontra no Fédon, uma vez que se admita a teoria das ideias e se abstraia das dificuldades que esta conceção pode suscitar quando entra em conflito com a do sensível e a da matéria como coisa em si. O argumento dos contrários supõe-na; o da reminiscência prova a pré-existência, mas não a eternidade da alma.

«Pelo que respeita aos três primeiros argumentos do Fédon, não nos parecem, pois, que tenham fundamento a opinião de Zeller, que os considera como estádios diversos de uma prova única, nem a de Bonitz, que neles vê dois argumentos diferentes tendo cada um seu valor. As três provas são distintas, com as reservas que cumpre fazer em relação às duas primeiras, que só são viáveis se a terceira o for. É que elas supõem, com efeito, e neste ponto Zeller viu justo, que a alma humana é uma substância diversa do corpo não afetada pela produção e corrupção».

A interpretação epistemológica do argumento reside, pois, na identificação da inteligência com o objeto inteligível.

É de si clara e subsistente; porém, se carecesse de prova extrínseca, poderia abonar-se com o Comentário de Olimpiodoro ao Fédon, notadamente no passo em que diz que «o corpo é da mesma essência que a ignorância, porque o conhecimento une, e o corpo não é senão divisão», e algumas linhas abaixo, com idêntico sentido platónico, que «o conhecimento é a beleza da alma, devido à sua evidência e ao seu encanto. Quanto mais se separa da matéria e por consequência da ignorância, tanto mais é belo, e a sua suprema beleza consiste em se confundir com a luz inteligível».

Após a argumentação da terceira prova, a conversação toma um rumo ético-religioso com o mito escatológico do destino das almas e com o desenho do perfil espiritual do verdadeiro filósofo.

Se é da natureza da alma que ela sobreviva à decomposição do corpo, daí não se segue, contudo, que todas tenham idêntico destino. As que são almas extremes no momento da morte lograrão a bem-aventurança; pelo contrário, as que se deixaram contaminar pelo que não é alma, isto é, as materialidades, e saem impuras, expiarão no corpo dos animais, em conformidade com a corporeidade que as manchou, um destino miserando. A transmigração não é necessariamente inerente à imortalidade de todas as almas, porque as que sempre houvessem contemplado a verdade persistiriam no puro ser da inteligibilidade enquanto que as que trocassem o amor da verdade pelo afã das coisas sensíveis e corpóreas seriam condenadas à reincarnação.


?>
Vamos corrigir esse problema