Introdução ao Fédon de Platão

O mito encerra, assim, a lição, a um tempo moral e intelectual, de que cumpre ao filósofo furtar-se às emoções corpóreas e procurar na contemplação da verdade a certeza que o liberte das flutuações da opinião e da turba das impressões sensíveis.

Assim entendido, o «exercitar-se em morrer» (hic., p. 21) não significa que Platão tivesse considerado como objeto da Filosofia «a meditação da morte», como é vulgar dizer-se, designadamente em oposição a Espinosa, para quem a Filosofia devia consistir na « meditação da vida ». O pensamento filosófico do Fédon mergulha na conceção ascética da vida e dela se nutre abundantemente; no entanto, Platão não pretendeu, rigorosamente, que o filósofo se ocupe e preocupe com «a meditação da morte», mas que cuide e se exercite no amortecer do corpo, porque o filosofar lhe proporcionará a felicidade na medida em que renuncie e se liberte de apetites, prazeres, honrarias, etc., sempre vinculadas às solicitações corpóreas.

A vibrante exortação à vida espiritual como que deixara os circunstantes emocionados e confusos. Todos se sentiriam arrebatados pela sedução das palavras de Sócrates, mas no íntimo parece que se interrogavam silenciosamente sobre se a convicção do Filósofo podia ser admitida como certeza, isto é, se ele havia narrado motivos de crença ou exposto razões de convencimento.

Compreende-se. A argumentação continha no íntimo dificuldades iniludíveis, a começar na tese de semblante mais aceitável e perentório: o ser humano como composto de corpo e de alma, de mortalidade e de imortalidade. Se a alma é, como Sócrates dava a entender, o sensório do corpo, parece que ou a alma contém o corpo ou o corpo se completa na alma, e portanto tornava-se difícil admitir a conceção da vida espiritual como recolhimento da alma em si mesma pela libertação do corpo e exercitação da morte. Por outras palavras: o corpo não tem necessariamente de fazer parte integrante do objeto da vida espiritual?

Foi esta dúvida que, como é crível, provocou o silêncio dos circunstantes e que Sócrates quebrou ao convidar Símias e Cebes a dizerem em voz alta as razões que em voz baixa pareciam segredar. O diálogo adquire então as feições de um debate crítico, cujo fim, como bem notou Léon Robin (Notice, cit. XXXVII), consiste em precisar «a essência da nossa alma, reportando-a à Ideia de alma... É esta relação que cumpre demonstrar, a fim de ficar definitivamente estabelecido que o ascetismo do filósofo e a sua serenidade em face da morte não eram um mal-entendido».

São duas as objeções e ambas procuram pôr em foco as consequências absurdas da demonstração da sobrevivência da alma.

A circunstância de se não apresentarem objeções à existência e pré-existência da alma mostra que as respetivas provas haviam sido aceitas. Dir-se-ia que o argumento da reminiscência a todos convencera.

A primeira objeção procede de Símias, que é de crer, como supõe Gomperz, se tivesse baseado na conceção da alma como harmonia dos elementos que entram na composição do corpo, a qual talvez remontasse ao pitagórico Filolau e mais tarde haveria de ser exposta pelos peripatéticos Aristoxeno e Dicearco.

Consiste a objeção em comparar a relação alma-corpo no momento da morte à relação do acorde musical com a lira —: o acorde é, como a alma, invisível, incorpóreo e belo, a lira é, como o corpo, visível e material, — e em contrafazer a argumentação de Sócrates supondo a destruição da lira. Não será, porventura, absurdo afirmar que a harmonia do acorde sobrevive à destruição das cordas, só por se dizer que é de natureza diversa e superior aos materiais de que a lira é feita?

O absurdo procura atingir a estrutura da demonstração da sobrevivência da alma, mostrando que assim como o acorde musical consiste na harmonia das vibrações das cordas da lira, assim também a alma é a resultante da harmonia das forças corpóreas, cujos destinos se encontram intimamente relacionados: uma não se compreende sem a outra.

Num pitagórico, mesmo moderado, como parece ter sido Símias, a comparação tem algo de paradoxal; por isso, pode admitir-se que se na mocidade ele foi sequaz do Pitagorismo não o seria neste momento, por ser legítimo pensar com Gomperz (ob. cit.), que «o objetivo principal da comparação era seguramente abalar a opinião de que os fenómenos psíquicos não são de origem superior. O essencial da doutrina era evidentemente esta proposição: os processos psíquicos são produto dos factores corporais, não sendo necessário recorrer a uma essência particular para se explicar a sua existência. Numa palavra, é a teoria psicológica que se designa habitualmente de materialista, mas sem a confusão de ideias que leva a considerar as próprias funções psíquicas como alguma coisa de corpóreo, e não apenas como produto do corpóreo».

A segunda objeção, mais arguta, veio de Cebes. Como Símias, Cebes enlaça substancialmente a alma ao corpo, mas de maneira diversa; em vez de a considerar, como aquele, a harmonia do corpo, julga-a o princípio que anima e mantém o equilíbrio das forças corpóreas.

Disse, em resumo, que a circunstância de se admitir a sobrevivência da alma após a morte de um corpo em que ela estivesse encarnada não implicava logicamente que sobrevivesse a todos os corpos para que transmigrasse. A alma perdura, mas não parece razoável considerá-la inconsumptível e, portanto, imortal, porquanto a transmigração de corpo para corpo traz consigo o desgaste e a consumpção. Por muito que dure, perecerá um dia como o próprio corpo —, de certo modo como o tecelão que sobrevive aos vestuários que teceu e usara, mas não sobrevive ao último que fabricou. O tecelão dura mais que os seus vestuários; mas não seria absurdo dizer-se que se o vestuário existe, o tecelão lhe sobreviverá por ser mais duradoiro?

Cebes admitia, como se vê, a existência e a pré-existência da alma, mas fazia reserva quanto à imortalidade, porque, embora reconhecesse que a alma podia sobreviver à morte de vários corpos, se lhe afigurava lógico que ela viesse a perecer também com o último que animasse. A simplicidade da alma não era razão suficiente para que ela se não gastasse no exercício da própria atividade.

A serenidade de Sócrates perante a morte, baseada na convicção de que a sua alma era imortal, não parecia, pois, assentar em fundamento racional firme. Para o ter, cumpria demonstrar que a alma era indestrutível, e esta demonstração ainda não fora feita.

Os argumentos de Símias e de Cebes visaram o mesmo alvo, mas divergiam relativamente ao tempo em que se operava a extinção da alma: aquele, pensava que ela se extinguia paralelamente à morte do primeiro corpo em que habitasse, o segundo, admitia que ela habitasse vários corpos e se fosse consumindo progressivamente até exalar o derradeiro alento com o último suspiro do corpo em que finalmente se encarnasse.

Com a dúvida e incredulidade de que brotavam, estranháveis em indivíduos de formação pitagórica e que levaram Platão, como observou Wilamowitz-Moellendorf, a defender contra eles a doutrina da metempsicose e a opor-se-lhes relativamente a outros dogmas da Escola de Pitágoras, dir-se-ia ter-se baldado a argumentação até então produzida e que havia que retomar o problema desde o começo. Sócrates não hesitou, aceitando o desafio no campo da razão demonstrativa para que o convidavam. O seu exemplo é admirável de honradez intelectual: nenhum subterfúgio retórico, nenhuma habilidade dialética, nenhum rodeio sofístico. Pelo contrário, a declaração formal, categórica, do horror à «misologia», que Kant recordará mais tarde num passo austero dos Fundamentos da Metafísica dos Costumes e definirá concisa e exemplarmente como «aversão à razão».


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