Introdução ao Fédon de Platão

É o saber assim considerado que vai permitir refutar a objeção de Cebes. Este colocara-se no terreno da experiência física, ou por outras palavras no do conhecimento sensível, e a fundamentação da imortalidade, como a de todos os objetos do saber, tem de se procurar nas representações inteligíveis, isto é, nas Ideias. Cebes transviara-se, seguindo o caminho do erro e da ilusão; o bom caminho é o da dialéctica e o da consideração das Ideias, que dão, a um tempo, a explicação e a justificação a priori da realidade, como hoje diríamos, e talvez se possa dizer — tema controvertido, mormente depois da Escola de Marburgo —, em face de outras exposições da teoria, designadamente da República (liv. VI e VII).

Segundo o Fédon, as Ideias não são imagens nem projeções das coisas sensíveis; são a realidade autêntica, e não aparente como a realidade transmitida pelos sentidos. O Belo, o Bem, a Grandeza, etc., existem em si; não são generalizações. Se assim é, como é forçoso admitir e Sócrates diz ter reiteradamente repetido —, maneira indireta de Platão significar que a sua teoria das Ideias era ao tempo em que redigiu o Fédon tema frequente das discussões da Academia, — o método da concordância lógica acima referido impõe que as coisas sensíveis se chamem belas por concordarem com o Belo, e não por serem em si mesmas belas.

Daqui o problema subtil e complexo da relação do sensível com o inteligível, capital no Platonismo.

No conjunto da obra platónica podem notar-se soluções diversas, normalmente designadas pelo termo que exprime a relação do inteligível ao sensível: manifestação (parousia), comunicação (koinonia), imitação (mímesis), participação (métexis).

Como diz Stefanini (cit. Platone, I, 240), não se trata de uma «questão de palavras: paréinai exprime uma relação muito menos íntima que koinonéin e metéxein, pois com o primeiro termo a distinção nítida do inteligível e do sensível não dá razão bastante do respetivo vínculo, e com os outros acentua-se a penetração dos dois mundos de modo que compromete a transcendência das Ideias, a que Platão não pode renunciar ».

No Fédon, que é o diálogo onde cumpre notar a solução que apresenta do árduo problema, só se fala expressamente de métexis, de parousia, e de koinonia, isto é, explicitando brevemente, as coisas sensíveis são belas porque participam do Belo em si (métexis), porque o Belo em si está presente nas coisas belas (parousia), e ainda porque as coisas comunicam com o Belo em si (koinonia).

Como é óbvio, cada uma destas expressões designa uma solução diferente, e, por consequência, apresentando-as conjuntamente, Platão parece inculcar que ao tempo em que escrevia o Fédon só estava seguro de «que é por causa do belo que as coisas belas são belas» (hic., 87), mas quanto à relação ou vínculo da coisa bela ao Belo em si, do fenómeno à Ideia, não tinha ainda opinião assente: «nada mais torna bela [a coisa] do que a presença ou participação daquele belo, realizada de qualquer modo que seja (sobre o que ainda nada posso assegurar, a não ser que todas as coisas belas recebem do belo a sua beleza)» (Hic., 86-7).

A imprecisão é manifesta, dando margem à diversidade das hipóteses, pois « presença » e « participação » implicam soluções que mais tarde Platão não colocará no mesmo plano e que a crítica histórico--filosófica cuidadosamente distingue, mormente depois da análise de Teichmüller (1873) ao conceito de parousia, que ele interpretou no sentido de imanência no devir, e da interpretação da «participação» e da sua possibilidade, que são os árduos problemas do Parménides e do Sofista.

Cremos, não obstante, que a relação de participação (métexis) é a mais plausível e que pode dizer-se com Stefanini (ob. cit., I, 242) que no Fédon «a causalidade das ideias não consiste na ação fora delas para produzir, informar ou ordenar uma realidade externa; o seu próprio ser é que constitui a condição necessária e suficiente (dióti) do ser deficiente das coisas. As ideias são causa das coisas, como o todo é causa da parte. Neste sentido a relação metéxica exprime a imanência das coisas nas ideias, a resolução do ser parcial daquelas no ser destas que é plenamente».

Seja, porém, qual for a interpretação que se admita, uma conclusão se impõe como consequência implícita em qualquer delas, a saber: uma coisa só se explica cabalmente quando se liga, ou melhor vincula, ao que nela há de inteligível, isto é, à sua essência.

Foi para chegar a esta conclusão que Platão fez o sumário da teoria que mais tarde, volvidos poucos anos como é crível, haveria de desenvolver com genial originalidade. Agora, importava-lhe, acima de tudo, um ponto de partida para refutar Cebes, e por isso a teoria das Ideias tem no Fédon a feição de uma propedêutica. O filósofo carecia de assentar que as verdadeiras causas residem nas ideias imutáveis e que o método a seguir devia ser o método lógico, de concatenação dos juízos com as Ideias. A objeção de Cebes, que ficara em suspenso, podia agora ser encarada de frente, à luz desta conceção e com o socorro do método apropriado.

Como se recordará a objeção consistia em dizer que a alma dura mas não perdura imperecivelmente. Para a refutar, Sócrates desenvolve uma argumentação que esquematicamente se pode sintetizar no encadeamento dos seguintes raciocínios:

Os contrários não coexistem nem podem coexistir no mesmo sujeito —, ou por outras palavras, se uma coisa possui essencialmente uma propriedade não pode admitir a propriedade contrária. O corpo humano passa da vida à morte, mas isto não significa que a vida, como essência, devenha ou possa devir o seu contrário.

Estabelecida a dialética dos contrários, Sócrates mostra a seguir que a essência da alma consiste em ser vida, excluindo intrinsecamente a morte, que é o contrário da vida; por consequência, a alma é não--mortal, e como o Imortal ao qual ela participa é de sua natureza imperecível, segue-se que a alma é imortal e imperecível.

Dos vários problemas que cumpre considerar nesta argumentação, dois se impõem com particular importância: o da sua interpretação e o do seu valor intrínseco e em relação à teoria platónica das Ideias.

Como na primeira prova, Platão invoca a alternação dos contrários, porém com intenção diferente. Naquela, procurara mostrar que a sucessão dos contrários era uma lei do Universo a qual implicava a impossibilidade de reduzir a imortalidade à mortalidade, mas deixava em suspenso a natureza concreta da imortalidade, isto é, se era pessoal, se impessoal. Agora, nesta prova, o recurso à lei cíclica dos contrários pretende mostrar que a alternação alma-corpo não é da mesma natureza que a alternação das concretizações físicas, como, por exemplo, a dos objetos que de quentes passam a frios. Naquela, há um elemento imperecível, que é a alma; nestes, pelo contrário, quando o calor vem ocupar o lugar do frio, este desaparece e perece, como mostra o caso da neve, porque se assim não fosse, o que na neve é contrário do calor retirar-se-ia do que está gelado para continuar algures a sua existência própria até que voltasse a infundir-se noutro sujeito suscetível de a receber.


?>
Vamos corrigir esse problema