Introdução ao Fédon de Platão

O rigorismo da dialética dos contrários conduziria a absurdos como este, isto é, à conceção dos estados físicos dos corpos com os caracteres próprios da alma; por isso, como observou J. Moreau, o argumento só é concludente «se a reflexão descobrir que a vida e a morte, assimiladas pelo raciocínio a contrários físicos, não são contrários como os demais».

Este foi, com efeito, o objetivo de Platão, pois como mostrou o mesmo sagaz e erudito intérprete, «a organização, que encontra uma realização temporária no organismo vivo, não é uma forma particular, empenhada na sucessão alternante dos contrários: é o todo que comanda as partes. A oposição da vida e da morte, da organização e do seu pretendido contrário, é, pois, a do todo e a do nada; a vida, em rigor, não tem contrário. A alternativa da vida e da morte só superficialmente se assemelha à alternação dos contrários num sujeito que é só substrato amorfo, pura potência de recetividade; a passagem do organismo vivo ao estado de cadáver explica-se pela partida de um princípio autónomo de organização, sujeito cuja atualidade transcendente às vicissitudes da existência física equivale a uma existência perpétua; e se a morte das gerações é incessantemente compensada pelo nascimento de gerações novas, é que as mesmas almas, perpetuamente existentes, circulam sempre no Universo, recebendo encarnações sucessivas».

«Enquanto a alternação dos contrários físicos exprime uma circulação de essências, traduzindo-se pelo aniquilamento periódico de existências que são apenas informações transitórias de um substrato indeterminado, de uma matéria amorfa, a renovação das gerações efetua-se pela reincarnação das almas, as quais conservam perpetuamente a sua identidade, por uma circulação de existências».

Se esta é a interpretação mais plausível, o valor lógico do argumento suscita também motivos de reflexão.

Como dissemos, ele é frequentemente designado de ontológico, pelo menos a partir da gigantesca, sempre atual e modelar Filosofia dos Gregos, de Edouard Zeller, designadamente por Rodier, Robin, Stefanini, Guéroult, J. Moreau, que acaba de lhe dedicar o penetrante estudo acima citado.

Sob o ponto de vista formal, não se oferece como a conhecida prova da existência de Deus cogitada por Santo Anselmo e por Descartes, mas pela estrutura da inferência é uma espécie do género a que pertence capitalmente esta famosa argumentação.

A imperecibilidade da alma é, com efeito, deduzida da sua essência, em virtude do princípio de que os conceitos não podem devir o seu contrário, e porque esta dedução é conduzida pelo processo característico de Sócrates, de dar às inquirições de problemas a feição de interrogatórios insistentes e minuciosos, este trecho do diálogo tem um ritmo mais fatigante e abstrato que os anteriores. O propósito consiste em mostrar que a essência do conceito alma exclui intrinsecamente o atributo mortal, e a prova do asserto radica no fundamento de que nenhum conceito pode conter propriedades ou notas que sejam opostas à sua essência.

Conseguiu Platão fazer a prova da passagem da esfera lógica para a esfera ontológica, isto é, mostrou que é possível dialeticamente passar da essência imperecível da alma para a imperecibilidade da existência dela como ser distinto do corpo e da Ideia, e em qualquer caso o que representa e vale este argumento?

Zeller não hesitou em afirmar que dos quatro argumentos do Fédon fora este o preferido de Platão, que nele teria condensado os anteriores, e deste juízo partilha Stefanini quando escreve que aqueles argumentos «são membros de um único argumento que poderia ser resumido nestes termos: a alma é imortal, porque é afim às ideias que são eternas» O juízo é discutível como quase todas as respostas à problemática histórico-filosófica do Platonismo, pois os demais argumentos da imortalidade da alma expostos com mais ou menos desenvolvimento e explicitação no Ménon, no Banquete, no Fedro e nas Leis, sugerem que são expressões dialéticas de uma tese que brota do anseio religioso e se radica na conceção ontológica e ética de Platão.

A esta luz, pode subscrever-se a opinião de Augusto Guzzo  sobre a marcha circular da argumentação do Fédon, visto Sócrates partir da crença na imortalidade pessoal para atingir a essência do conceito de imortalidade, e deste conceito inferir depois a justificação daquela crença. O círculo é, com efeito, completo.

Qualquer que seja, porém, a extensão que se conceda ao ilogismo deste vício dialético, assim como à opinião, notadamente de Gomperz, de que dentre todos os seus argumentos Platão considerou primacial o argumento ontológico, quando, talvez com mais fundamento, ele lhe preferiria o do Fedro, o facto é que a crítica mais recente não acata, em geral, a validade lógica desta prova.

Concorrem para isso várias razões, a começar no paralogismo que Kant pôs a claro na Crítica da Razão Pura, com o qual feriu mortalmente a prova ontológica da existência de Deus e que de ricochete atingiu também o nervo deste raciocínio platónico. Como diz Joseph Moreau, Platão produziu nesta prova uma argumentação translógica, que «finge utilizar a lógica para atingir conclusões que ultrapassam a lógica», ou por outras palavras mais explícitas, «pretende demonstrar a imortalidade da alma, a duração infinita da sua existência, obter uma conclusão ontológica, por um método puramente lógico, por um raciocínio fundado sobre relações de essências e a dialética dos contrários» (Ibid., 329-30).

A ilegitimidade da conclusão é manifesta, mas para além do salto no ilógico inerente a todo o raciocínio que da essência infira a existência, não faltam ao argumento outras críticas, como a de Windelband, que nele viu a infiltração da conceção teológica na conceção filosófica da alma (ob. cit., 146), e a da Gomperz, para quem «a aplicação da lei da contradição ao mundo das Ideias constitui o que pode chamar-se a mitologia do conceito»Intrinsecamente, à luz da reflexão crítica, o argumento tem a inconsistência de todos os argumentos similares que de uma essência ideal procuram inferir ou tirar outra coisa que não seja a existência ideal ou a existência empírica e concreta. Porém, à luz da filosofia platónica, se julgarmos com Zeller, Bonitz, etc., que ele se baseia e procede da teoria das Ideias, como é mais razoável, afigura-se-nos que com Rodier temos de reconhecer que ele vale o que valer esta teoria. Por isso, subscrevemos as palavras deste penetrante intérprete quando escreve em conclusão do seu estudo sobre as provas da imortalidade no Fédon, que «é possível que Platão tenha colhido a sua crença na imortalidade em teólogos e nos mistérios, e ser ainda possível também que «os argumentos do Fédon não provem o que foram destinados a provar» (Rhode, Psyché). É, porém, incontestável que, se se admite a teoria das ideias, são probatórios, e se é verdade que a antiga teologia inspirou a Platão a crença na imortalidade, não é menos verdade que ele a fez sua, estabelecendo-a tão solidamente como as suas doutrinas mais fundamentais. No seu ponto de vista, a imortalidade da razão é demonstrada com validade» (oh. cit., 52-3).


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