Introdução ao Fédon de Platão

Com este argumento termina a demonstração que Sócrates se propusera, mas o facto de ser o último não significa que Platão tivesse considerado o assunto definitivamente esclarecido. A sua mente, de insatisfeita problematicidade e que jamais descansou na revisão das próprias conceções, deixou a porta aberta à reflexão ulterior «de um exame mais seguro» (hic., 101). É esta uma das mais atraentes e educativas lições do Platonismo, e ao mesmo tempo uma das razões das suas dificuldades; por isso, não surpreende que tivesse retomado posteriormente o tema, embora sem a amplitude e o tratamento, por assim dizer monográfico, do Fédon.

Rememorando sumariamente o caminho percorrido, pode dizer-se que da longa conversação, tão estirada que não falta quem a julgue pouco verosímil, ficaram estabelecidos alguns pontos.

Em primeiro lugar, a insuficiência do método tradicional que os físicos costumavam aplicar na interpretação da Natureza; donde, a necessidade de um método lógico coerente com o verdadeiro saber, que é dado pela teoria das Ideias, e que permitisse fundar uma interpretação moral, e por conseguinte finalista, da natureza física e humana.

Podia acaso a alma ter uma essência mutável ou ser prisioneira do que é transitório e nunca persiste idêntico a si próprio? Se para haver prazer é necessário ter havido dor, pode porventura dizer-se, identicamente, que para a alma ser feliz é necessário que antes haja sido infeliz, e vice-versa?

Em segundo lugar, a aplicação do método e da teoria do saber ao problema da alma permitiu responder a estas e outras perguntas, e concluir que a alma é princípio de vida e não consequência da composição corpórea, que a sua essência, simples e invisível, é o pensamento, e  que é imortal, em última análise, por participar intrinsecamente da imortalidade da essência do Pensamento e da Vida.

Com tais fundamentos, a confiança de Sócrates perante a morte que se lhe aproxima hora a hora não brotava apenas da crença, porque radicava também na razão. Teoria e prática harmonizavam-se, pois, e encontravam na serenidade do seu comportamento o mais alto e exemplar testemunho.

A ideia da morte aterra o comum dos homens, por ignorarem o verdadeiro sentido da existência; porém, o filósofo não teme, por saber o que ela é e, sobretudo, porque habituou a alma a separar-se do corpo, a contemplar as Ideias puras e a gozar a certeza da eternidade que tal conhecimento proporciona.

Poderia, porém, o génio prodigioso e infatigavelmente inquiridor de Platão dar-se por plenamente satisfeito com as razões aduzidas?

Pôde já pensar-se como adiante veremos, que o Fédon é todo ele um diálogo mítico, e, com menos radicalismo, que Platão jamais admitiu a conceção da imortalidade pessoal, apresentando a sobrevivência das almas como um mito protréptico para uso do povo.

A crítica não leva hoje tão longe o juízo dissuasivo de Platão sobre a própria obra, mas há que reconhecer, como escreveu Robin, que o Fédon «deixou na sombra muitos pontos importantes. Se a morte é a separação da alma e do corpo, donde vem que as almas grosseiras e maculadas, permanecendo coladas ao corpo, em rigor não morram, e que a ausência do corpo seja só privilégio de defuntos filósofos, enquanto as almas dos outros sofram no Hades, como o mito final descreve, penas propriamente corpóreas, experimentando aí sentimentos cuja origem o Fédon reportou ao corpo?»

«Além disto, a alma segundo Fédon, é pensamento, e é também princípio de vida para o nosso corpo, causa espontânea de crescimento e de movimento: como se ligam entre si estas duas propriedades? Qual é a fundamental? Pertencem urna e outra às almas dos animais como as dos Deuses e dos homens? Ou à alma universal, se é certo que o mundo é um corpo vivo que se move com ordem?»

«Questões são estas a que Platão tentou responder: no livro IV da República, com a doutrina da alma tripartita; no Timeu, com a conceção das duas almas mortais; no Fedro e no livro X das Leis, com urna nova prova da imortalidade fundada na automotricidade da alma; no Timeu, ainda, representando a essência da alma como intermediária entre a indivisibilidade da essência inteligível e a divisibilidade do corpo sensível, explicando depois pelos círculos móveis da alma e pela relação neles do Mesmo e do Outro, a um tempo, os diversos movimentos, uniformes ou não, do mundo e dos astros, e também a retidão ou desordem do nosso pensamento e da nossa conduta; no Fedro e no Timeu, com a substituição, mais ou menos radical, das escatologias infernais por uma escatologia de algum modo imanente, feita de migrações e de metensomatoses. Nada disto arruína a doutrina do Fédon, antes a esclarece» (Not. cit., LXII-III).

Sócrates terminou a exposição da derradeira prova exortando os circunstantes a que refletissem «que, sendo a alma imortal, exige, em consequência, o nosso cuidado, não só em atenção ao tempo em que dura o que chamamos vida, mas a toda a duração... Porquanto nada mais levarão consigo, quando baixarem ao Hades, do que a sua formação moral e os seus hábitos, o que, segundo dizem, acarreta a máxima utilidade ou prejuízo a quem morre, logo, desde o princípio da sua viagem para além» (Hic., 101).

A conceção da imortalidade apresenta-se, pois, com evidente clareza, estruturalmente associada às consequências da vida terrena no destino da alma, de tal sorte que à exposição das razões justificativas da crença na imortalidade se sucede a narração escatológica do destino das almas. A teoria da imortalidade tem por natural seguimento a doutrina da sobrevivência, mas pode porventura a razão discursiva colocá-las no mesmo plano e desenvolvê-las com o mesmo método?

Estabelecida a existência da alma, qualquer que seja a natureza que se lhe atribua, se simples, como no Fédon, se tripartita, como mais tarde dirá na República, no Fedro e no Timeu, a dialética pode demonstrar que ela é imortal, mas a vida que ela leva além-túmulo nem a razão nem a experiência podem dá-la a conhecer. O que dela se disser é conjetural, e portanto sem o aparato demonstrativo da imortalidade. Por isso, a conversação adquire na parte final um sentido francamente ético-religioso, com base nas ideias de responsabilidade e de recompensa, e em vez de se desenvolver discursivamente, decorre miticamente. O dito de Hegel de que Platão mitifica onde não pode raciocinar tem todo o parecer da exatidão.

Até a esta altura do diálogo, Sócrates fora quase sempre o dialético preocupado em esclarecer o próprio pensamento e o dos seus interlocutores; agora, o dialético como que se cala e em seu lugar aparece o Sócrates religioso, que em vez de encadear raciocínios deixa que a crença e a fantasia se associem ao pensamento em íntima compenetração.

Já antes, no começo da conversação, a propósito do suicídio, ele resolvera o problema em causa com o voto do sentimento religioso — a impiedade —, que não com um argumento da razão insensível, mas agora o que fora incidental torna-se essencial, porque a resposta ao desejo de saber como vivem as almas depois da decomposição do corpo é, no fundo, religiosa, e na forma, mítica.

O fundo, com efeito, tem por objeto capital o destino e a vida das almas a partir do instante em que se desprendem do corpo. Começa por falar, segundo «a tradição» —, que a erudição histórico-filológica, designadamente de A. Dieterich, no seu livro intitulado Nekyia (Lípsia, 1913), e de E. Rhode, no mais divulgado Psyché, em virtude de tradução francesa, mostraram ser de origem órfico-pitagórica  -, no «génio dos mortos» que as conduz ao Hades, onde receberão o destino que merecem e para o qual serão conduzidas por outros guias.


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