Gomes de Lisboa e o averroísta Nicoleto Vernia

As duas vagas de repulsa que o averroísmo levantou nos meios teológicos e filosóficos da Idade Média e só levemente salpicou a nossa gente, espraiaram-se também até à nossa terra.

A primeira, remontando diretamente, segundo cremos, à agitação de Sigério de Brabante em Paris, atingiu a Universidade de Lisboa com o magistério de Tomás Escoto, cujas audazes proposições, algumas delas intrinsecamente blasfemas como o De tribus impostoribus, na qual incluía os fundadores das três religiões do Ocidente, encontraram em Álvaro Pais, bispo de Silves, resoluto antagonista e, ao que parece, radical extirpador.

Já nos referimos em escrito anterior a esta alteração da pacatez intelectual do nosso meio escolar do século XIV; por isso nos ocuparemos agora, aliás, fugidamente, da segunda vaga, no final do século XV, na parte em que ela se reporta imediatamente ao ensino de Nicoletto Vernia, na Universidade de Pádua.

Como é sabido, a filosofia de Aristóteles foi ensinada na famosa escola, sobretudo no século XV, por Paolo Venetto, Gaetano de Tiene e Nicoletto Vernia, mediante os comentários de Averróis, o Comentador na qualificação dos parafrastas medievais do Estagirita. Aparentava-os a todos a sujeição ao pensamento do filósofo árabe, que a tradição escolástica de Raimundo Lulo, de S. Tomás de Aquino e de Egídio Romano, continuada pelos mestres de Paris e do comum da Cristandade, repelira, assim como suscitara a repulsa de Petrarca, o primeiro dos humanistas na sensibilidade e nas aspirações, e de Ermolau Bárbaro. Teólogos e humanistas coincidiam na mesma repulsa. Os primeiros, não podiam tolerar que se interpretasse certo passo do Liv. XII da Metafísica de Aristóteles no sentido da eternidade da matéria, nem se visse no intelecto ativo, que o mesmo Filósofo distinguira, no Da alma, do intelecto passivo, a prova da existência de uma só inteligência, objetiva e impessoal, que ilumina todos os homens e se identifica com o intelecto divino, porque tais interpretações minavam pela base as conceções da criação ex nihilo, da personalidade divina e da imortalidade individual; e os segundos, inebriados pela clareza do pensamento dos antigos e pela expressão harmoniosa e bela em que o vazaram, sentiam como que uma repugnância visceral pela algaravia verbal e pela sofistaria dialética dos escritos averroísticos.

Dos três escoliastas que mergulharam as raízes da sua atitude filosófica no averroísmo só Nicoletto Vernia (#t# 1499) solicita a nossa atenção, embora Paolo Venetto também a prenda como comentador das Súmulas Lógicas de Pedro Hispano.

Precursor de Pietro Pomponazzi e mestre de Pico della Mirandola, Nicoletto Vernia, de seu verdadeiro nome Paolo Nicola, foi representante característico do averroísmo paduano. Na linha desta orientação doutrinal e didática, as suas ideias não se prestam à exposição sistemática, porquanto pretendera apenas explicar, continuar ou desenvolver certos problemas ou passos de Aristóteles e de Averróis sob a forma escolástica de quaestiones.

Dos seus escritos importa à História da Filosofia em Portugal considerar a Quaestio an ens mobile sit totius naturalis philosophie subiectum, inserta na edição do tratado aristotélico De generatione et corruptione, cum expositione omnium expositorum eius, interprete Egidio Romano, Patavii, 1480, fls. 125 a-127 b, e o opúsculo Nicoletus Vernia theatinus Philosoph. Mag. in studio Patav. Perutilis et subtilis questio de Philosophie naturalis subiecto, dado à luz sem indicação de lugar e data.

Nestes escritos, o mestre paduano de Artes versava o problema do objeto da Filosofia Natural, tomando posição relativamente às opiniões de Alberto Magno, S. Tomás de Aquino e Duns Escoto, os quais, respetivamente, sustentavam ser o corpus mobile, o ens mobile e a substantia naturalis.

A correlação do assunto com o problema da individuação alargou-lhe naturalmente o alcance e o sentido, mas foram as implicações relativas à natureza dos seres angélicos que concitaram as paixões, reavivando a luta entre tomistas, escotistas e averroístas, de que Pádua era então teatro.

Com efeito, se se admitisse, com os tomistas, que o «ente móvel» constituía o verdadeiro objeto da Filosofia Natural, os anjos não poderiam ser considerados sob o ponto de vista físico, porque, sendo inteligências puras, estavam fora da Natureza e, portanto, imóveis: se, pelo contrário, se pensasse com os escotistas, designadamente Trombetta, que na Universidade de Pádua ensinava Metafísica, que a «substância natural» definia o objeto da Física, os anjos recaíam sob o objeto desta ciência, visto pertencerem às substâncias naturais pela sua natureza e quididade, que os tornava sujeitos de movimento.

Vernia tomara o partido de mostrar que, como dissera Alberto Magno, o «corpus mobile» constituía o verdadeiro objeto da Física e que esta opinião coincidia com as de Aristóteles e de Averróis; consequentemente, disputava, a um tempo, contra tomistas, porque colocavam a Física sob a dependência da Metafísica, e contra escotistas, porque as substâncias imateriais estavam fora da consideração física, isto é, a substância material só podia ser objeto da Física se se considerasse objetivamente sob o ponto de vista sensível, como sujeito de movimento e de repouso.

Em seu entender, o objeto de uma ciência requer oito condições — realidade, unidade (pelo menos analógica), universalidade, adequação, ser conhecido primeiramente quanto à razão formal, ter partes, afeções, e princípios — e só o «corpo móvel» as realizava plenamente como objeto da Física; e precisando a noção de «corpo» afirmava ainda que omne ens mobile est, que o movimento lhe é conatural — omne ens mobile est — e lhe são inerentes as três dimensões do espaço.

Não era fácil conciliar lógica e ontologicamente esta conceção com o ser próprio dos anjos, porque não tendo corpo, os anjos não podiam ser objeto de consideração física, mas como entes dotados de mobilidade, podiam sê-lo, visto a Física ser a ciência da matéria que subiicitur motui et mutationi. Demais Nicoletto salientava ainda a contradição existente entre a ubiquidade e o movimento infinitamente veloz dos anjos, e por isso dizia que falava neste assunto segundo a razão natural —, eufemismo dissimulador do ceticismo teológico e da híbrida posição gnosiológica da dupla verdade, segundo a qual a mesma proposição podia ser filosoficamente verdadeira e teologicamente falsa, ou vice-versa.

São hoje conhecidas as linhas fundamentais da influência do averroísmo paduano no surto do racionalismo da Renascença assim como as censuras e controvérsias que ele levantou, pelas implicações heréticas ou naturalistas das suas interpretações, designadamente acerca da eternidade do Mundo e da potência infinita do primeiro motor.

De todos os quadrantes surgiram as parcialidades, umas favoráveis, outras hostis à ressurreição das velhas heresias filosóficas. Entre nós, podem filiar-se em Pádua as tendências racionalistas, que não luteranas, de Damião de Góis e de Fr. Roque de Almeida, um e outro auditores na famosa Universidade, assim como é no averroísmo paduano que deve procurar-se a razão de ser da oposição doutrinal de alguns dos nossos escolásticos no século XV e, sobretudo, no século XVI.

Nada se sabe da crítica feita oralmente nas escolas claustrais por tomistas e escotistas, embora deva ter-se por seguro que a cátedra foi o baluarte da ortodoxia e da tradição filosófica, constantes e unânimes na defesa da criação ex nihilo e na da conceção da contingência do Mundo. É possível que um ou outro mestre passasse ao papel as suas lições, ou que um estudante as apostilasse. Se assim sucedeu, nada chegou até nós em papéis manuscritos, e dos impressos o prelo apenas nos transmitiu o escrito breve do franciscano Fr. Gomes de Lisboa, saído na Itália, com o seguinte título:          

Gometius Hispanus. Gometii ordinis minorum Artium / doctoris et sacre Theologie magistri, Questio / perutilis de cuiuscumque scientie subiecto principaliter / tum naturalis philosophie foeliciter incipit.


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