Gomes de Lisboa e o averroísta Nicoleto Vernia

Saiu juntamente com: 

Doctoris subtilis scoti questiones super / libris de anima aristotelis foeliciter incipiunt. 

Estes dois escritos, impressos em caracteres góticos, formam um livro in-folio de 28 fls. sem numeração e sem data, mostrando, no entanto, a composição tipográfica que se trata de um incunábulo.       

Fr. Gomes de Lisboa, que não deve confundir-se com o beneditino Fr. Gomes Ferreira (#t# 1442), vivia então na Itália e o seu nome gozava de prestígio, louvando-o em belo epigrama latino o famigerado Henrique Caiado, que ao tempo estanciava em Pádua, convivendo na roda de patrícios e de amigos de Copérnico, com quem possivelmente também teve trato  assim como o franciscano Iacobus Marchepallus na epístola fratri Gomexio vlixbonensis theologantium atque philosophantium principi, inserta no Tractatus de incolentibus purgatorium. Hic est tractatus animas ex pia ignis surnmum pontificem soluere posse docens (Gebennis, 1509), existente na Biblioteca Columbina de Sevilha.

A sua biografia é, em rigor, desconhecida, e da sua atividade literária sabe-se ter dado ao prelo, além da Questio perutilis, o livro de Artesanus Summa de casibus conscientiae. Ediderunt Barthomaeus de Bellatis et Gomez de Ulixbona. Venetiis, Iohannes de Colonia et Manthen de Geretzen, 1478. Foi reeditada em 1480 e 1519, como pode ver-se nas descrições do vol. II, pp. 436 e segs. da Bibliografia Geral Portuguesa. Século XV.

Alguns bibliógrafos atribuíram-lhe uma edição das Quaestiones de anima, de Duns Escoto, o que por outros é considerado duvidoso, designadamente C. R. S. Harris, na erudita monografia Duns Scotus, I (Oxford, 1927), p. 321.

Da sua atitude filosófica é testemunho capital a Questio perutilis de scientie subiecto principaliter in naturalis philosophie, suscitada, como Fr. Gomes declara na epístola dedicatória a Anselmo Meia, pela já referida Perutilis et subtilis questio de Philosophie naturalis subiecto.

A epístola merece a transcrição dada a extrema raridade da obrinha de Fr. Gomes:

« Scribis,manifice Anselme Meia in manus tuas incidisse questionem illam de subiecto naturalis philosophie a claríssimo viro ac summo philosopho Magistro Nicoletto Vernia theatino editam, ac legisse te in ea quam multa que Schoti doctoris subtilissimi: cuius doctrinam profiteris sententie aduersantur. Adiecisti ipsam totam fere questionem philosophorum principi Aristoteli tuo iuditio dissentire. Prostremo rogas ut ad te rescribam quid ab Aristotele et Schoto de hac questione receperim et an assentiat Aristoteli dissentiatue Schotus. Ego vero qui omnia tibi debeo que a me petis meum officium negare non possum. Idcirco non ut tanti viri dieta damnare velim. Sed quo tibi satisfaciarn partim etiam veritati, quam amicitie preferendam philosophus iudicavit ethicorum primo. Litteris mando quid ex ipsius philosophie fonte de preposita questione degustaret. Tu vero cum ea legeris diligentes si questiuncula fuerit tuo acutissimo ingenio digna cum reliquis que a nobis accepisti reponas. Vale.»            

Como se vê, Fr. Gomes foi convidado a examinar as afirmações de Nicoletto Vernia relativamente ao objeto da Filosofia Natural e em especial se Duns Escoto dissentira de Aristóteles neste assunto. Tomou, como cumpria, a posição histórico-crítica, mas o método que seguiu foi o do mais extreme escolasticismo disputante, imitando ad unguem o Doutor Subtil.

Como a exposição de Vernia, as ideias da Questio perutilis não se prestam à exposição sistemática, dada a feição interpretativa e refutatória de todos os seus períodos. Com efeito, examina, uma a uma, as condições que a juízo de Vernia eram requeridas pelo objeto de qualquer ciência, e já acima indicamos. O exame tende a refutar a opinião de Vernia de que a intentio de Aristóteles e de Averróis seu comentador consistira em considerar como objeto da ciência natural o corpo móvel; e em seu lugar, a sustentar com Duns Escoto que o objeto da Física devia ser a substância natural, por suscetível de movimento e de outras affectiones.

A universalidade deste último objeto poderia levar à ideia da existência de uma só ciência natural; por isso, Fr. Gomes não hesitou em afirmar ser possível o modus multiplicandi scientias primas et subalternas, detendo-se com algum vagar na relação das ciências subalternas com a subalternante.

Não sabemos se o opúsculo do nosso compatriota concorreu diretamente para a excomunhão de Nicoletto Vernia, pronunciada pelo bispo Barozzi e lida nas escolas de Pádua em 6 de Maio de 1489. É de crer que não, dado que Fr. Gomes não chamara a atenção dos seus leitores para as implicações da doutrina relativamente à natureza angélica nem pusera na refutação o azedume de uma objurgatória.

Dissentiu filosoficamente, como sequaz do escotismo; mas com ter dissentido do mestre averroísta, nem por isso deixou de concorrer também, por via diferente, para o passo instaurador da ciência moderna. É que se Vernia franqueava o caminho do espírito científico ensinando que o objeto da Física devia procurar-se objetivamente, nos dados fornecidos pelo mundo sensível, Fr. Gomes também concorria para a instauração de outro rasgo da modernidade ao referir-se na derradeira página da Questio perutilis às passiones mathematicas do ser e ao acentuar a correlação das ciências subalternas à subalternante.

Com tais pensamentos, consciente ou inconscientemente, estava na linha da conceção escotista da homogeneidade do universo, isto é, como disse B. Landry, «ü n'est pas, dans l'univers, d'individu, si original et personnel soit-il, qui ne porte en lui une matière intelligible. La matière deviendra l'élément scientifique, alors qu'avant Duns Scot elle re'stait le noyau obscur, impénétrable à toute lumière».

As grandes orientações metodológicas e científicas quase nunca abrem passo por caminhos retos; por isso, há que considerar os pequenos ramais que elas percorrem na sua marcha sinuosa. A discussão do objeto da Filosofia Natural é um destes ramais.

Para o estudioso moderno, o seu semblante e a sua expressão literária não tem feições que seduzam; não obstante, a controvérsia em que participou o nosso compatriota como que simboliza a agonia de um velho debate medieval. Ela apresenta, pelo menos, o mérito positivo de haver concorrido para precisar o conceito de matéria, frequentemente confundido com os de ens mobile, corpus mobile, subtractum, substantia finita, etc., e para estabelecer a conceção da Física como ciência natural, autónoma e isenta de considerações qualitativas.

Pomponazzi, cuja obra racionalista desenvolveu dúvidas e problemas potencialmente contidos no averroísmo paduano e cuja mente discriminou com alguma clareza o âmbito próprio da ciência corno disciplina independente da suserania teológica, sucedeu a Nicoletto Vernia na cátedra de Pádua, e foi em Pádua que o génio de Galileu lançou as bases da Física moderna.

Tanto basta para pôr à vista o fio de continuidade histórica que tornou possível a atitude mental donde se desentranharia uma das fundamentais e decisivas afirmações do espírito científico no século XVII, o século admirável das geniais lucubrações da Ciência e da Filosofia.

Coimbra, Fevereiro de 1948.


?>
Vamos corrigir esse problema