Introdução à ética de Espinosa

Resumindo e simplificando ao máximo as demonstrações, a dedução destas propriedades pode obter-se da seguinte maneira:

Se houvesse várias substâncias, ou seriam da mesma natureza, divergindo apenas nas afeções, ou seriam de natureza diversa.

No primeiro caso, seriam indiscerníveis, porque a substância é anterior às suas afeções (Prop. I) e portanto não podiam diferir entre si (Prop. V). Pelo que é impossível a pluralidade de substâncias absolutamente semelhantes.

No segundo caso, nada teriam de comum entre si (Prop. II), e porque entre coisas que nada podem ter de comum entre si não pode haver relação causal (Prop. III), segue-se que uma substância não podia ter sido produzida por outra (Prop. VI). Daqui a consequência de que a substância é incriada, e mesmo que se admitisse a existência de várias substâncias tinham de ser todas incriadas, ou por outras palavras, a substância é causa de si mesma.

Não é possível, porém, a pluralidade de substâncias. A demonstração da unicidade da substância está ligada à da sua infinidade. É que se a substância não pode ser concebida senão por si mesma é porque não pode existir senão por si, isto é, não pode ser produzida por outra, da qual seria dependente (Prop. VII); por conseguinte, não pode existir senão como infinita (Prop. VIII), dado ser coisa finita a coisa que é limitada por outra da mesma natureza.

Sendo infinita, tem de ser única, porque se houvesse duas ou mais substâncias infinitas limitar-se-iam reciprocamente e, consequentemente, deixavam de ser independentes (Prop. VIII).

Sendo única, a substância existe necessariamente, visto nada existir fora dela que possa limitá-la ou impedir-lhe a existência; e é eterna, porque a eternidade de uma coisa é a sua própria existência enquanto esta resulta da sua definição (Def. 8), ou por outras palavras mais claras, porque a existência da substância resulta e dá-se imediatamente com a sua própria essência, pelo que está fora do curso do tempo e desde sempre na atualidade do presente.

Sendo-lhe inerentes estas propriedades, a substância não pode considerar-se de maneira alguma como resíduo da abstração ou como um conceito vazio, nem tão-pouco identificar-se com a noção de matéria, se por tal se entender a massa inerte e passiva. Pelo contrário: é o ser absolutamente infinito, que, além das propriedades referidas, envolve tudo o que exprime uma essência eterna e infinita (I, Prop. 10, esc.).

Espinosa chama atributo ao que «o intelecto percebe da substância como constituindo a essência dela» (Def. IV), de sorte que os atributos são essências constitutivas da substância mediante as quais esta é apreendida pelo intelecto. O atributo aparece, assim, como manifestação da substância, mediante a qual se exprime uma essência constituinte da substância e se torna inteligível a sua existência. Por outras palavras, os atributos designam a constituição e atividade da substância e são expressão da sua inteligibilidade.

Sendo única e infinita, a substância é dotada de infinitos atributos, cada um dos quais é infinito porque exprime uma essência da substância. Entre a infinidade da substância e a infinidade dos atributos há, porém, a diferença de que a substância é absolutamente infinita, isto é, abrange a totalidade das essências que constituem o ser, enquanto que os atributos são concebidos por si (Prop. X) e somente «são infinitos no seu género» (Prop. XI), isto é, relativamente à essência que exprimem.

Daqui, a um tempo, a homogeneidade e a diversidade dos atributos. Como próprios de uma só e única substância, os atributos são, sob este ponto de vista, homogéneos, visto exprimirem a essência ou natureza da substância, da qual se não distinguem, como expressamente consigna a expressão — Deus, isto é, todos os atributos de Deus, (I, Prop. XIX e XX, cor. 2); mas por serem infinitos somente no seu género, são diversos, visto cada um exprimir uma essência que se não confunde com as demais e tem de ser concebida por si. Por isso, a substância não é a soma dos seus atributos, dada a sua unidade e unicidade; os atributos é que são a expressão da infinidade da substância, mediante a qual esta se torna inteligível.

Pode pensar-se que a dedução das propriedades e dos atributos inerentes à substância teve por fim preparar a identificação da substância com Deus. É uma interpretação possível, mas não indiscutível, como adiante mostraremos, dado que o método geométrico indica a ordem ou derivação lógica e não a génese e sucessão das ideias na mente de Espinosa. No entanto, seja qual for o juízo que se faça, é fora de dúvida que a unicidade, a infinidade e a eternidade que se predicam de Deus, eram apresentadas como propriedades da substância e, consequentemente, Deus e substância tornavam-se designações diversas de uma só e mesma realidade.

A definição VI, de Deus, continha implicitamente a identificação, que se tornou explícita na prop. XI, cujo objeto é a demonstração de que «Deus, ou por outras palavras, a substância que consta de infinitos atributos,... existe necessariamente».

O objetivo de Espinosa nesta proposição consiste em mostrar que a essência de Deus, ou o que é o mesmo, da substância, envolve necessariamente a sua essência —, ou por outras palavras, em demonstrar a existência de Deus a partir da sua essência.

Em rigor, não se propõe demonstrar a existência necessária de Deus como substância, que já havia demonstrado na prop. VII, mas sim demonstrar, como notou Huan, «que somente pode ser dada na Natureza uma única substância e que esta substância única é absolutamente infinita ou Deus». Com efeito, o final do escólio da prop. X, I, anuncia que nas proposições imediatas se mostrará que «na Natureza somente existe uma única substância»; o enunciado da prop. XI declara expressamente que o Deus cuja existência necessária vai demonstrar, é «a substância dotada de infinidade de atributos»; e, uma vez estabelecida esta demonstração, o corolário primeiro da prop. XIV conclui «que na Natureza somente existe uma única substância e que esta é absolutamente infinita».

«Desta maneira, continua o mesmo penetrante intérprete das proposições iniciais da Ética, pode representar-se o esquema da demonstração da existência de Deus, da seguinte forma: por definição, a essência de Deus, concebida de maneira positiva, é absolutamente infinita, isto é, dotada de infinidade de atributos; ora não pode dar-se na Natureza senão uma única substância absolutamente infinita, envolvendo toda a realidade como modo ou atributo da sua essência; Deus existe, portanto, necessariamente, pois se não existisse, não existiria na Natureza substância alguma, o que é contraditório e impossível (Ep. 35). A unicidade da substância, implicada pela infinidade dos atributos, estabelece necessariamente a existência de Deus. A síntese estabelecida pelo conceito de atributo entre a substância e a «causa de si» tem, pois, por condição a unicidade desta substância; e supõe antes de mais demonstrado que pertence à substância não somente existir por si, mas ainda ser única. As sete primeiras proposições da Ética têm por objeto o exame do primeiro ponto e as três seguintes o do segundo ponto; estabelecidos estes dois pontos, Espinosa aborda na prop. XI as provas propriamente ditas da existência de Deus».


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