Introdução à ética de Espinosa

Corresponderá, porém, a sequência lógica à ordem histórica da sucessão das ideias na mente de Espinosa?

A resposta é afirmativa se o espinosismo for considerado uma das possíveis derivações do cartesianismo, e em especial a conceção de substância, porque neste caso a ordem lógica da Ética corresponderia à ordem histórica, isto é, à constituição sucessiva da doutrina.

Vimos, porém, na subdivisão anterior, que a crítica recente e mais bem fundada estabelece que o essencial da conceção espinosana da substância é anterior ao conhecimento que Espinosa teve da obra de Descartes, além de que não se vê claramente como possa passar-se do teísmo cristão de Descartes para o panteísmo de Espinosa, dado que a passagem implica outros elos além dos puramente lógicos,

Pressupõe, pelo menos, o dinamismo da substância, que não está em Descarte; e por consequência, pelo menos nesta parte, a ordem histórica precederia a ordem lógica. Por outras palavras: fora a partir da noção de Deus que Espinosa fizera a identificação do ser divino com o ser da substância, e não ao contrário, como a sequência das demonstrações da Ética dá a entender. Será, porém, assim?

Victor Delbos, um dos grandes da notável escola de historiadores franceses da Filosofia do último quartel do século passado e do primeiro do nosso século, sustentou, a nosso ver com acerto, que o conceito de substância, enquanto tal, não implica o conceito de unicidade e que foi mediante o conceito de Deus que Espinosa operou a identificação do ser divino com o ser da substância e, portanto, deu o passo para o panteísmo. Desde que Deus era definido como ente constante de infinitos atributos, cada um dos quais exprime uma essência infinita (def. VI), o conceito de Deus implicava a absorção em si de toda a realidade da substância.

Além disto, como o mesmo insigne historiador mostrou nas suas lições sobre o espinosismo, Deus é considerado causa imanente dos seres, com os quais forma o Todo, no primeiro dos dois diálogos insertos no Tratado Breve, que é a mais antiga expressão escrita do pensamento de Espinosa que possuímos. A afirmação da unidade do ser aparece explicitamente formulada como condição da pensabilidade lógica do Mundo e, sobretudo, da vida moral, ou com mais propriedade, ético--religiosa. De sorte que, conclui Delbos, «a unidade da substância, que na Ética será concluída por via lógica e conceptual, resultou inicialmente, no pensamento de Espinosa, de uma afirmação primária e de algum modo prévia: a afirmação da unidade e da infinidade da Natureza, por onde a Natureza era identificada com Deus».

A conceção da Natureza como Deus manifestando-se e desenvolvendo-se no ser e na razão de ser de tudo quanto advém à existência surge, pois, como reiteradamente temos dito, como intuição primeira e fundamental de Espinosa, que a explicitou em sistema mediante a assimilação de numerosas ideias colhidas em leituras, notadamente de Descartes.

A esta luz, a equação: Substância = Deus = Natureza, não foi obtida gradualmente por via de dedução lógica, porque desde a primeira hora sempre esteve presente como fito da meditação de Espinosa. Ao convertê-la, porém, em teoria sistemática, pensada e exposta more geometrico, apresentou-a com elos de filiação lógica, os quais são anteriores à sua génese e, de algum modo, deixam na sombra a característica essencial de Deus ou da substância: a produtividade interna e a infinita fecundidade.

c) Deus e seus atributos (Prop. 15-28)  

A definição mais adequada de Deus, segundo Espinosa, não é a que considera o ente sumamente perfeito mas a que tem em vista o ser que consta de infinitos atributos, cada um dos quais exprime uma essência infinita.      

Daqui a consequência de que o Deus de Espinosa, isto é, a Substância, isto é, a Natureza, só tem da Divindade que as almas adoram o nome, porque o seu conceito exclui radicalmente todo e qualquer predicado que implique consciência, como Ser omnisciente, omnipotente, criador e transcendente ao Mundo. E uma Razão que torna inteligível o mecanicismo do Universo e mediante a qual a mente humana pode fruir a satisfação impessoal de se sentir parte integrante da ordem universal e, portanto, tudo compreender com equânime serenidade; não é, nem pode ser, o Ente misericordioso e justo, capaz de reparar injustiças ou de se amercear dos sofrimentos humanos

O Deus de Espinosa nada tem que ver, pois, com o Deus dos anelos religiosos ou da salvaguarda e garantia de valores e das supremas ideias metafísicas. E essencialmente a condição ontológica e a razão de ser lógica da existência e da pensabilidade do Universo e da fatualidade que nele se produz; por isso, o conhecimento das suas propriedades e atributos é obtido por via dedutiva, à maneira dos geómetras, isto é, com eliminação total de toda a subjetividade, de toda a afetividade, de toda a consideração teleológica, de toda a estimação valorativa.

Na marcha discorrente do seu pensamento, de mente fria, implacável no propósito de sempre vincar a relação da consequência para a razão mas com rasgos do heroísmo mais custoso e raro, Espinosa utilizou, como não podia deixar de ser, conceitos dominantes na filosofia do seu tempo e resultados tidos por certos na ciência coetânea. Daí, um duplo movimento na elaboração da filosofia de Espinosa: o de assimilação de dados alheios e o da sua transformação no cadinho da própria doutrina por forma a serem utilizados com coerência.

Por isso, a filosofia de Espinosa aparece, sob certo aspeto, continuadora de conceções de Descartes, de Hobbes, de escolásticos, assim cristãos, como árabes ou israelitas, e sob outro, inteiramente original e contrária a estas mesmas conceções. E o que torna claro a conceção espinosana dos atributos de Deus.

Descartes concebera Deus como substância infinita e a realidade objetiva explicável ontologicamente pela existência de duas substâncias finitas, o Pensamento e a Extensão. Daqui, a dualidade irredutível de Deus e do Mundo, e no Mundo, da res cogitaras, ou Pensamento, e             da res extensa, ou Matéria. Embora existente e subsistente pela vontade de Deus, o Mundo, ou na linguagem de Espinosa, a Natureza naturada, nem por isso deixava de ser substancializado, isto é, possuía ontologicamente realidade própria, independente do ato do Ser Supremo que e criou.

Esta conceção substancialista do Mundo era incompatível com a intuição fundamental de Espinosa, de Deus sive Natura, que é como que a síntese de dois princípios fundamentais: Deus é a única substância e tudo o que se dá na realidade existe nele e não pode existir nem conceber-se fora dele (I, Prop. XIV e XV).

Por isso, embora Espinosa tivesse admitido que o Pensamento e a Extensão eram elementos da explicabilidade do Mundo, transformou radicalmente a conceção de Descartes ao privar as duas realidades da Natureza naturada da propriedade ontológica de substâncias, para lhes conferir a de atributos da substância, única e infinita que é Deus. Donde, importantes consequências que situam o espinosismo em posição radicalmente diferente das conceções dualistas ou pluralistas do ser e             sem possível paralelo com teologias e metafísicas teístas.


?>
Vamos corrigir esse problema