Introdução à ética de Espinosa

Pela teoria da unicidade da substância e da multiplicidade dos modos, Espinosa dava uma explicação da relação entre o ser infinito e os seres finitos, ou por outras palavras, entre as coisas e os acontecimentos que se davam no Mundo e o ser verdadeiramente essente e existente. A fatualidade do Universo, no seu conjunto, tornava-se explicável, mas, para que a explicação se tornasse compreensível, cumpria mostrar como procede da substância única e infinita a diversidade sem conto dos modos finitos, isto é, os seres e pensamentos que se dão na Natureza naturada, os quais não só se nos apresentam diversos senão ainda heterogéneos, a ponto de por vezes não terem entre si quaisquer relações notadamente de causalidade.

Espinosa encontrou a explicação no conceito de atributo, com a modificação estrutural por ele introduzida na noção cartesiana. É que exprimindo o atributo não só a essência mas ainda o poder infinito inerente à substância, a heterogeneidade dos modos procede da heterogeneidade dos atributos, cada um dos quais exprime uma essência eterna que é infinita somente no seu género (def. VI).

A solução, com ser coerente, mormente em função da metafísica e da física cartesianas, que Espinosa utilizou e adaptou à coerência interna da sua intuição do Mundo e da Vida, envolve as mais árduas dificuldades interpretativas —, talvez as mais complexas do espinosismo, tão fértil em dificuldades, e as de mais copiosa literatura crítica. Consideraremos especialmente as seguintes:

1) Que sã atributos? A resposta implica o exame da relação entre as definições (III e IV) de substância e de atributo como preliminar da determinação da quididade dos atributos.

2) Sendo a substância absolutamente infinita e não envolvendo o seu conceito qualquer limitação, como pode determinar-se por atributos, cada um dos quais é infinito somente no seu género, isto é, exprime uma certa essência eterna e infinita?

A resposta implica o problema de saber se a existência de um atributo não envolve a negação de todos os demais, e, por consequência, se a existência dos atributos está ou não em contradição com o monismo substancialista em que assenta o sistema.

3) Que atributos são acessíveis ao intelecto e como se dão na substância?

A resposta implica, dentre outros problemas, os que resultam da extensão ser considerada essência da substância, ou por outras palavras, Deus como ser extenso, e se o atributo do pensamento imprime ou não sentido idealista ao sistema.

4) Como se produz a atividade da substância?

A resposta comporta reflexões diferentes, designadamente sobre a natureza da causalidade divina e sua imanência.

1) Conceito de atributo

Sob dois aspetos cumpre considerar o conceito de atributo: o da extensão e o da compreensão.

Sob o ponto de vista da extensão, é óbvio que o conceito de atributo não coincide com o de substância. A substância é o que existe em si e por si é concebido; e o atributo não é concebido por si mas pela substância, da qual exprime uma essência eterna e infinita somente no seu género. Como claramente indica o escólio da prop. X, I, o conceito de atributo não tem, nem podia ter, extensão idêntica à do conceito de substância.

Sob o ponto de vista da compreensão, a situação é inteiramente diferente.

Dizendo a definição (IV) que é atributo «o que o intelecto percebe da substância como constituindo a essência dela», surge logicamente a dúvida sobre se o atributo é uma determinação objetiva da substância ou uma distinção da razão, isto é, um conceito resultante da maneira como o intelecto percebe a essência da substância. No primeiro caso, os atributos seriam realidades comparáveis à substância; no segundo, expressões do conhecimento humano que, incapaz de abranger a infinidade da substância, torná-la-ia inteligível mediante a determinação de essências definidas, isto é, os atributos seriam expressão da maneira como a mente considera a substância.

Da aporia surgem soluções diversas, que em resumo sumaríssimo assim se podem apresentar:

a) Os atributos são formas subjetivas do conhecimento. É a tese que, remontando a Hegel, foi principalmente exposta pelo historiador Erdmann, que a designou de modalista e que outros designam de formalista.

Os atributos seriam extrínsecos à substância, dentre outras razões, porque Espinosa na definição de atributo (IV) não diz que os atributos exprimam a substância, mas sim que são «o que o intelecto percebe da substância como constituindo a essência dela»; ora o intelecto em ato não pertence como tal à substância, como estabelece a prop. XXXI, I; por conseguinte o atributo, como a palavra indica, não é o que é proprium da substância, mas o que lhe é atribuído. A substância em si é absolutamente indeterminada — ens absolute indeterminatum repugnando ao seu conceito qualquer determinação, pois toda a determinação é negação.

Esta interpretação procura conciliar a multiplicidade dos atributos heterogéneos com a unidade e indeterminação da substância. O seu mérito consiste em salvaguardar a inteligibilidade da substância, que lhe é tão inerente como o poder de existir e de produzir, mas tem os defeitos de haver sido pensada como que à luz da epistemologia kantiana, pela maneira como subordina o ato de conhecer ao pensamento cognoscente, o que é inconciliável com a epistemologia espinosana, e de contradizer algumas afirmações expressas de Espinosa. Assim, e de maneira decisiva, na demonstração da prop. IV, I, afirma claramente «que fora do intelecto nada se dá por meio do qual possam distinguir-se várias coisas entre si, a não ser as substâncias, ou por outras palavras os seus atributos e respetivas afeções»; e na prop. IX, I estabelece que «quanto mais realidade ou ser uma coisa tem, tanto mais atributos lhe são próprio».

O argumento baseado na noção de substância como ens absolute indeterminatum também não tem força probatória, porquanto esta expressão não significa o ser desprovido de atributos, mas, pelo contrário, o ser absolutamente infinito em propriedades. Sendo assim, os atributos não podem ser considerados subjetivamente, como modos pelos quais o entendimento percebe a substância. Se se duvidar, porém, da força desta argumentação, cremos com A. Léon que todas as dúvidas se dissipam com a seguinte objeção: sendo os atributos em número infinito, ou mais exatamente, inumeráveis, como poderiam depender somente do nosso entendimento num sistema que limita a dois o número de atributos acessíveis ao conhecimento humano?.

b) A refutação da tese que acabamos de resumir abre passo à interpretação dos atributos como realidade objetiva. É a solução que prontamente ocorre como mais compatível, não diremos com a teoria da substância, mas com a teoria do Mundo, de que aquela teoria é condição ontológica.

Não faltam, por isso, as interpretações orientadas neste sentido, havendo até algumas que levam tão longe a objetividade dos atributos que chegam a substancializá-los, o que é claramente contrário à letra e ao espírito do sistema.

Como acima dissemos, os atributos são para Espinosa manifestação da substância mediante a qual se exprime uma essência constituinte da substância e se torna inteligível a sua existência. A manifestação, porém, não deve ser entendida no sentido de estados ou afeções da substância, porque às manifestações desta espécie chama Espinosa modos, sendo precisamente pelos atributos que se produz a Natureza naturada, «isto é, todos os modos dos atributos de Deus, enquanto são considerados como coisas que existem em Deus e não podem existir nem ser concebidas sem Deus» (I, Prop. XXIX, esc.).


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