Introdução à ética de Espinosa

Daqui resulta que é pelos atributos que se manifesta o poder da substância, ou por palavras mais expressivas, a sua essentia actuosa; sendo assim, os atributos implicam um sentido essencialmente ativo.

Com efeito, Kuno Fischer, no vol. II da Geschichte der neueren Philosophie dedicado a Espinosa, sustentou, em oposição à tese formalista de Erdmann, que os atributos devem ser considerados em correlação com o poder infinito de produzir inerente à substância, donde o designar-se a interpretação de dinastia. O nervo da sua argumentação, no resumo de Huan, reside no seguinte: «Deus é a única causa eficiente de toda a existência e de toda a essência; ora, uma causa eficiente é uma atividade produtora, uma potência criadora, uma energia viva, e portanto uma força. Há infinidade de modos heterogéneos uns aos outros, sem relação causal; não podem, por conseguinte, seguir-se em Deus da mesma força; portanto, há em Deus urna infinidade de forças, produzindo cada uma série de efeitos determinados; ora, para que esta infinidade de forças constitua uma essência única, se reporte à mesma substância divina, deve dizer-se que estas forças são os atributos da mesma substância divina, que consiste, por consequência, em ser um «mundo de forças»A interpretação encerra uma parcela de verdade, mas está longe de ser toda a verdade, porque além do facto de Espinosa não designar em parte alguma os atributos por «forças», não se harmoniza com a estrutura do sistema. Corno mostrou Camerer, «não é possível conciliar a unidade e a indeterminação da substância com uma pluralidade de forças constituindo cada uma um universo separado e concebido por si: se a substância consiste num «mundo de forças», independentes e heterogéneas, o monismo é necessariamente quebrado».

Somente a substância como tal pode ser chamada a Força, da qual promana toda a realidade; por isso, os atributos não podem ser considerados como forças separadas, sem que ipso facto se destrua a unidade da Força infinita da Substância.

Se a interpretação formalista não toma em conta a produtividade infinita da substância, a interpretação dinamista, por seu turno, também não toma em conta o logos, isto é, a inteligibilidade absoluta, tão inerente à substância como a produtividade. O defeito capital de uma e de outra interpretação é a limitação do ponto de vista em que se colocam; daí, a necessidade de uma interpretação que salvaguarde com a possível coerência, se não todos, pelo menos o maior número de dados.

c) Deixando de lado outras interpretações, quer as que procuram superar o antagonismo das teses formalista e dinamista, quer as que se esforçam por estabelecer caminho independente, cremos que a via que mais facilmente pode conduzir à determinação da essência dos atributos é a que tenha em conta simultaneamente as relações dos atributos com a substância e com os modos, porque se manifesta ao conhecimento humano a fecundidade infinita da substância.

Sob o primeiro destes pontos de vista, pode afirmar-se, pelo que dissemos acerca das interpretações formalista e dinamista, que os atributos não são estados, quer do pensamento cognoscente, quer da produtividade da substância, e também não são intermediários entre a produtividade infinita da substância e os modos produzidos.

Esta orientação diz-nos fundamentalmente o que os atributos não são; por isso, a determinação do que são parece-nos que se encontra na relação com os modos.

Sob este ponto de vista, cada atributo exprime uma essência da substância, e só uma, e a maneira pela qual se nos torna inteligível esta essência consiste na relação que ela mantém com os modos particulares cuja existência tem o mesmo atributo por essência comum.

Considerado puramente em si mesmo, como expressão de uma essência da substância, o atributo é indefinível, como são indefiníveis as infinitas essências da substância; porém, nas relações com os modos que têm essência comum, o atributo com que devém determinado e, consequentemente, inteligível à razão humana. Por isso, visto conhecermos somente duas essências da substância, somente nos é dado conhecer dois atributos, ou sejam o Pensamento e a Extensão, mediante os quais se tornam inteligíveis os objetos e acontecimentos do mundo físico e do mundo psíquico.

É nos atributos e pelos atributos que o entendimento conhece adequadamente a realidade; e consequentemente, não sendo entes, nem estados, nem intermediários (I, prop. X), os atributos são funções que exprimem uma essência da substância na sua atividade criadora.

Considerados a esta luz, pode dizer-se, talvez sem rigoroso sentido histórico mas com compreensivo sentido atual, que os atributos, enquanto pensados nas relações com a substância e com os modos particulares por que ela se manifesta, significam as condições da legalidade e da pensabilidade da Natureza, ou por outras palavras, a ordem que rege a existência do Cosmos. A substância, escreve Cassirer, (e consequentemente os seus atributos, pode acrescentar-se), não existe nem é algo que «fora dos objetos singulares e separadamente deles possua ser distinto, ou seja a simples soma das coisas singulares, dado que a lei unitária, em virtude da qual todas as coisas singulares estão em interdependência recíproca, não é o produto e o resultado do ser das coisas singulares, mas o pressuposto dele».

2) Os atributos e a substância   

Acabamos de ver que os atributos exprimem funções da substância na produtividade dos modos, isto é, da fatualidade do Universo. Como é, porém, possível dar-se a multiplicidade de atributos sem se contradizer a unidade da substância e, por conseguinte, a estrutura monista do sistema? Se cada atributo é concebido por si (I, X) e é infinito no seu género (def. VI), como é possível dar-se e pensar-se simultaneamente a multiplicidade de atributos e a unidade da substância?            

Sustentou-se já, notadamente Camerer, que esta pergunta procede de uma contradição fundamental e por assim dizer nuclear do espinosismo, mas cremos que, em rigor, se trata de uma dificuldade abstrusa e não de uma contradição estrutural.         

A explicação que logo ocorre a quem reconheça importância capital ao mos geometricus da Ética e tenha presente a conceção do juízo analítico, herdada de Aristóteles e dominante na época de Espinosa, é a da interpretação da substância como sujeito absoluto de inerência, do qual os atributos seriam predicados. Espinosa não construiu sinteticamente a definição de substância, pela coordenação de propriedades separadamente observadas. Estabeleceu-a logo como sujeito de infinitas propriedades, que, consequentemente, se podem determinar por via de juízos analíticos. Assim entendida a substância, obter-se-ia uma explicação lógica, baseada na teoria do omne praedicatum inest subjecto, que Espinosa admitiu e no lugar próprio exporemos, em virtude da qual dar-se-ia no conceito de substância a coexistência da unidade dos atributos com a heterogeneidade deles entre si após a respetiva dedução analítica. Qualquer que seja a coerência desta explicação, que nos foi sugerida por Albert Léon e que ele aproxima com razão da conceção monádica do Universo, de Leibniz, refuta-a decisivamente a inconsistência dos seus fundamentos, somente compatíveis com a interpretação da Ética como sistema lógico de dedução analítica.


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