Introdução à ética de Espinosa

Com efeito, nem o método, nem a noção de atributo como predicado justificam a interpretação. O mos geometricus presta-se a ser indiferentemente o método de qualquer solução filosófica havida por certa; e a noção de atributo como predicado, isto é, o que se afirma ou nega do sujeito, fica aquém do significado lógico-ontológico que o atributo tem no sistema de Espinosa.

Procede da conceção estática da substância, e esta conceção deixa sem explicação cabal a produtividade infinita e infinda inerente à Natureza naturante. Os atributos não estão meramente contidos na substância como os predicados no sujeito ou as propriedades de dada definição de uma figura geométrica, à espera da mente que os deduza por via analítica, porque exprimindo essências da substância, são como ela verdades eternas (I, prop. 8, esc. 2).

Há, pois, que procurar a explicação algures, ou seja num sentido ontológico e dinâmico que salvaguarde a essentia actuosa da substância. Uma vez mais, ela encontra-se a nosso ver, correspondentemente à dificuldade da anterior subdivisão, na relação dos atributos com os modos e não exclusivamente na relação com a substância.

Na substância, os atributos não se diferenciam entre si nem em relação à substância, pois têm as mesmas propriedades formais — eternidade, infinidade, indivisibilidade, etc. — e idêntica conformidade causal — causalidade necessária, imanência, etc. Deus sive omnia Dei attributa, diz expressivamente a prop. XIX (Cf. p. XX, cor. 2).        

Diferenciam-se da substância somente respectu intellectus, que lhes intui a essência mediante os modos que geram. A heterogeneidade dos atributos dá-se, pois, em relação ao entendimento, quando os concebe por si e sem contributo de outro (I, p. XX, cor. 2), nos modos que deles resultam; em relação, porém, à substância identificam-se com ela, porque não é possível serem concebidos sem ela. 

3) O pensamento e a extensão como atributos de Deus

É inerente ao ser de Deus a infinidade de atributos infinitos; o entendimento humano, porém, somente concebe e conhece dois: o Pensamento e a Extensão.

Isto significa que Deus pensa e é extenso. Porque estes dois atributos e como se dão em Deus?

A resposta importa uma referência histórica e uma consideração metafísica. Comecemos pela primeira.

Pensamento e Extensão são as duas substâncias que Descartes havia considerado condição ontológica da explicabilidade do Mundo. A discriminação espinosana dos atributos radica indiscutivelmente neste dualismo, o qual assinala a conceção cartesiana de mais direta e decisiva influência em Espinosa.

A conformidade verbal não significa, porém, inteira conformidade conceptual.

Há, sem dúvida, analogia da irredutibilidade que Descartes estabeleceu entre as duas substâncias com a heterogeneidade radical que Espinosa estabeleceu entre os atributos; e pode ver-se ainda analogia entre a unidade intrínseca — o Pensamento é só Pensamento, a Extensão é só Extensão — que os dois filósofos atribuíram, respetivamente, a cada uma das substâncias e a cada um dos atributos.

Não obstante, se as analogias são mais ou menos transparentes, a transformação estrutural que o dualismo cartesiano sofreu na mente de Espinosa é evidente.

Na conceção espinosana do Universo a rerum natura é ontologicamente una. Daí, uma conceção monista antagónica das conceções dualistas ou pluralistas do Ser; e, por consequência, a diversidade radical dos dois filósofos. Para Descartes, o problema ontológico consistia em saber o que eram as duas substâncias criadas e, dadas as suas diferenças, como era possível o acordo entre elas; para Espinosa, pelo contrário, admitindo a existência de uma única substância, punha-se o problema de saber como é metafisicamente possível dar-se nela o processo físico do mundo natural. Consequentemente, as mesmas palavras que um e outro empregam nem sempre têm idêntico significado, variando por vezes não só na densidade do sentido como até mesmo na estrutura da significação. É o que acontece em parte com os vocábulos Pensamento e Extensão.

Para Descartes, como para Espinosa, estas duas palavras querem dizer, de modo geral, que somente conhecemos fenómenos psíquicos e corpos, isto é, psiquismos e concretizações concebidas, respetivamente, sob a forma de pensamentos e de seres físicos representados com as propriedades da extensão. Neste ponto, que não queremos apurar se é ou não o mínimo, coincidem, mas a partir dele começam as divergências.

No sistema cartesiano, o Pensamento e a Extensão mantêm o sentido tradicional de seres que têm em si o fundamento da própria realidade, porque os primeiros se dão na res cogitaras e os segundos na rex extensa, que são substâncias distintas do ser divino; no sistema espinosano, pelo contrário, tornam-se atributos da substância única, indivisível, etc., isto é, estão privados de toda e qualquer substancialidade e, consequentemente, Espinosa concebe os pensamentos pensados e os seres físicos como modos que se seguem da imanência do ser e da causalidade da substância ou Deus.

Basta este ponto, porventura o mínimo da divergência, para mostrar o desacordo dos dois filósofos, o que aliás em nada contradiz a origem cartesiana da determinação dos dois atributos da substância.

A origem, com efeito, porque a determinação teve posteriormente edificação própria, embora fundada no critério cartesiano da ideia clara e distinta, como se depreende da resposta que Espinosa deu à objeção de Tschirnhaus acerca dos motivos por que somente se conhecem o Pensamento e a Extensão dentre os infinitos atributos que são inerentes à substância.

Por intermédio de Schuller, Tschirnhaus convidara Espinosa a apresentar uma demonstração convincente, por forma que ficasse esclarecido cabalmente se as criaturas que fossem modos de outros atributos diferentes dos que conhecemos poderiam ou não conceber a extensão —, ou por outras palavras, se nos outros mundos, correspondentes ao nosso mundo da Extensão, as criaturas desses mundos somente percebiam o Pensamento e o atributo donde procediam os modos constituintes do mundo a que pertenciam. Na resposta, Espinosa insiste na opinião de que a alma humana, sendo a ideia do corpo, somente conhece o que envolve e resulta da ideia de corpo, e por conseguinte não pode conhecer outros atributos que não sejam o Pensamento e a Extensão. A determinação dos atributos conhecidos e a inconcebibilidade de todos os demais tinha, pois, razão suficiente, coerente com a epistemologia de Espinosa.

Indicada sumariamente a origem e a razão por que Pensamento e Extensão são, e não outros, os atributos que o entendimento percebe na substância, cumpre agora mostrar, não menos sumariamente, como se dão estes dois atributos em Deus. É o aspeto metafísico do subtil problema, cujas dimensões e relações constituem um dos mais interessantes temas da especulação filosófica do século XVII e dos mais subtis debates acerca do conceito de Deus.

Salvo os defensores da Teologia negativa, a atribuição positiva do Pensamento a Deus não suscitava reparos, por ser doutrina comum que os atributos convêm a Deus desde que sejam considerados em sentido absoluto. As objeções começavam com a significação que Espinosa vertia no conceito de Pensamento divino, dado que o não concebia como sinónimo de um Pensamento que se pensa distinto dos objetos pensados e criados pela omnipotência divina. O horror, como que nativo, de Espinosa a todas as intromissões de antropomorfismo na conceção do Ser absoluto, conduzira-o a considerar por Pensamento divino a inteligibilidade pura coessencial ao Ser infinito e, portanto, a repudiar todas e quaisquer formas de psiquismo que impliquem a ideia de eu, isto é, de ipseidade consciente e de sujeito pensante. Em rigor, na conceção espinosana, Deus não pensa: é o Pensamento.


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