Introdução à ética de Espinosa

A gnosiologia de Espinosa somente se torna compreensível a partir do conceito de substância, e portanto do realismo do ser. Todas as interpretações que considerem outro ponto de vista, como a relação ou a transcendentalidade do objeto, estão em íntimo desacordo com os fundamentos do sistema. 

4) A causalidade em Deus          

O que até agora temos exposto reporta-se principalmente ao ser essente de Deus; cumpre agora atentar no seu ser operante, pois possuindo Deus infinidade de atributos, deles resultam (segui debent) necessariamente infinidade de coisas infindas, isto é, tudo o que pode recair sob um intelecto infinito (I, prop. XVI).  

A potência de Deus é a sua própria essência (I, XVI, cor. 2; XXXIV), pelo que se não pode entender a afirmação de que «Deus, ou por outras palavras, todos os atributos de Deus são imutáveis» (I, XX, cor. 2) no sentido de Deus ser inerte. Pelo contrário; a produtividade é coessencial ao ser divino, de tal maneira que não pode dizer-se que Deus existe e cria, senão que é o próprio criar. Consequentemente, Deus não é concebível independentemente da sua atividade, sendo em virtude dela, ou por outras palavras, das leis da sua própria natureza, a causa eficiente da essência e da existência de tudo o que existe (I, XVI, cor. 1 XVII; XXIV, cor., e XXV), por forma que coisa alguma tem em si mesma o poder de agir, isto é, fora de Deus não existe nenhuma causa propriamente eficiente (I, XXVI e XXVII). Deus é, pois, a «causa única» (Ét., II, X, esc.). Como e em que sentido?

Fixando a atenção especialmente no livro I da Ética encontram-se as seguintes designações da causalidade: causa ou razão (Prop. XI, dem. 2.a); causa imanente e causa transitiva (Prop. XVIII); causa próxima e causa remota (Prop. XXVIII).

A primeira, causa ou razão, é sinónimo da relação da consequência para a respetiva razão. Espinosa exprimiu-a frequentemente com o exemplo da definição de triângulo, da qual necessariamente resulta que os três ângulos são iguais a dois retos. Neste caso, causa significa fundamento e conexão lógica.

A segunda, causa imanente, tem o sentido de causa inerente interiormente ao agente e que se não consome nos efeitos. Opõe-se a causa transitiva (ou transiente), cuja noção implica o conceito de transitoriedade, pelo que é transitiva a causa que cessa com o efeito produzido. Deus como causa imanente ao Ser, que é permanente e sem a qual o efeito não pode ser produzido.

A quarta, causa eficiente, exprime a ideia de ação e de produtividade (I, XVI, cor. 1).

A quinta e sexta, isto é, causa próxima e causa remota, significam, respetivamente, causa imediata, isto é, que produz efeito sem intermediário, e causa «que não está ligada ao efeito por qualquer modo» (Prop. XXVIII, esc., 11).

Nesta distinção, têm importância capital as conceções de causa ou razão, de causa eficiente e de causa imanente.

A primeira é, por assim dizer, característica do racionalismo espinosano, dado o paralelismo que Espinosa estabelece entre a derivação das propriedades de dada definição, v. g. a de triângulo, e a derivação da existência real de tudo o que o intelecto infinito de Deus conhece da essência de Deus (I, XVI), pelo que Deus é causa de tudo o que advém à existência. A relação lógica da consequência à razão é identificada à relação efetiva da causa para o efeito, de sorte que se torna inerente à causa a sequência necessária do efeito (ax. 3).

O conceito de causalidade como «causa ou razão» fundada logicamente a conceção da causalidade divina como fluir necessário, sendo que Deus não possui entendimento nem vontade (I, XVII, esc.), não age por vontade (I, XXXII, cor.) nem em atenção a fins (I, Apênd.), não é indiferente, é imutável nas suas determinações, e é livre, isto é, nem extrínseca, nem intrinsecamente se dá seja o que for que o constranja a fazer ou a não fazer (I, XVII, esc.; XXXI, cor.).

Se a noção de causa como razão fosse a única noção de causalidade inerente a Deus, poderia pensar-se com alguns intérpretes, notadamente Windelband, que o Deus de Espinosa é essencialmente razão lógica e não causa real e ativa, tal como o espaço não é causa real do triângulo ou da igualdade dos seus ângulos a dois retos. Neste modo de ver, Deus seria causa sem ser força ativa, tal como o triângulo é causa não-ativa dos seus três ângulos serem iguais a dois retos.

A identificação da causa lógica e da causa real num só conceito de causalidade contraria, porém, este modo de ver, tanto mais que a noção de causa eficiente, também inerente a Deus (I, XVI, cor. 1), implica a ideia de ação e de produtividade. É incontestável que Espinosa acentua por vezes a feição geométrica da causalidade divina, designadamente quando estabelece que ela produz os seus efeitos com a mesma necessidade, eterna e imutável, com que da definição de triângulo resulta a igualdade dos seus ângulos a dois retos; no entanto, não é esta a única noção de causalidade que Espinosa reporta a Deus, além de que, ao empregá-la, o metafísico da Ética, como observou Huan, tem em vista refutar a conceção que atribui a Deus entendimento e vontade livre (Ét., I, XVII, esc.; XXXIII, esc. 2; e II, III, esc.).

Deus é e está sempre em ato (I, prop. XV, XVI, XVII), resultando desta conceção uma noção de imanência em que cumpre atentar (I, XVIII).

A primeira coisa que logo ressalta é que a atividade divina não se exerce em algo ou sobre algo que seja exterior ou independente de Deus, pois coisa alguma existe fora ou independente de Deus. Consequentemente, a causalidade divina não é exiente, isto é, não sai fora do próprio ser divino, nem transiente (ou transitiva), quer se entenda por esta expressão, usual na Escolástica, a causa que se consome no efeito produzido, quer a que modifica algo independente do agente causante.

A causalidade divina é, pois, imanente, e, por conseguinte, não é Deus que está e age no Mundo, senão que é o Mundo, desprovido de autonomia e de substantividade própria, que está em Deus.

«Deus é anterior a todas as coisas, escreve Huan, não só por natureza (Ét., I, I), mas por causalidade (Ét., I, XVII, esc.); por conseguinte, se nada existe e não pode ser concebido senão pela sua essência e pela sua potência, Deus existe e pode ser concebido por ele próprio, não só na sua essência como na sua potência; portanto, todas as coisas dependem da sua potência ou da sua causalidade no mesmo sentido em que elas dependem da sua essência. Ora Espinosa repete várias vezes que todas as coisas existem em Deus ou são contidas em Deus (Et., I, XV; II, VIII; V, XXIX, esc.); e não diz nunca que Deus está contido nas coisas, e a razão disto é claramente expressa pelo escólio da Ét. II, X. Com efeito, se Deus estivesse nas coisas no mesmo sentido em que elas estão nele, não só as coisas não poderiam existir nem ser concebidas sem Deus, senão que o próprio Deus não poderia existir nem ser concebido sem as coisas, isto é, constituiria propriamente a essência delas».

Como é, porém, possível que se dê a existência das coisas e da fatualidade do Mundo em Deus e elas nada acrescentem ao ser de Deus, se corrompam e pereçam subsistindo a causa donde resultam?


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Vamos corrigir esse problema