Introdução à ética de Espinosa

À primeira pergunta, Espinosa respondeu com a teoria da produção necessária; e à segunda, não deu resposta na Ética, constituindo o seu silêncio uma das grandes dificuldades do sistema. Consideremo-las separadamente.

A teoria da produção necessária dos seres é evidentemente a única compatível com a teoria do ser e da causalidade em que assenta o sistema, afirmando-a expressamente na Ética (I, prop. XXIX e XXXIII). Sem impropriedade se pode dizer que Espinosa não cuidou tanto em fundamentar a teoria da produção necessária como em deixar bem acentuada a falta de fundamento da conceção que lhe é contrária, ou seja a da criação do Mundo por ato da vontade divina. Por isso, ao longo da sua obra no Tratado Breve, nas Cogitações Metafísicas, na Ética (I, XVII, XXXII e XXXIII), sempre procurou mostrar a impossibilidade lógica desta última conceção, já em si mesma, como ato de vontade, já no que ela implica, a saber, a possibilidade do Mundo poder não existir e ser diferente do que é.

A temporalidade e a mutabilidade do devir mundanal propõe, como dissemos, uma subtil dificuldade.

Com efeito, dada a unicidade do Ser e a imanência da sua causalidade, que naquela se funda (I, XVIII), como é possível metafisicamente a existência do mundo fatual, no seu acontecer incessante de eventos e na individuação concreta de seres e de coisas que nele se produzem? A permanência, o equilíbrio, o ritmo e o desenvolvimento necessário das forças e seres que constituem o Universo tornam-se compreensíveis, quando considerados no seu conjunto, porque são coerentes com a conceção do ser único, imutável, e eternamente idêntico a si mesmo; mas o nascer, o devir e o perecer dos seres concretos não será a negação ostensiva do monismo da substância? Se os seres e os acontecimentos que ocupam o espaço real e o tempo vivido não são meras ficções da imaginação e não são nem podem sê-lo perante o realismo e o nominalismo de Espinosa —, a sua existência carece de explicação coerente com o sistema; qual?

A explicação mais aceitável, que é também a mais razoável apesar das adversativas que ela implica, é a da existência de uma dupla causalidade em Deus, mas não de Deus.

Em Deus, com efeito, e não de Deus, porquanto de Deus, como vimos, somente se seguem a causalidade imanente e coisas eternas e infinitas. Dada, porém, a existência de modos finitos, isto é, de seres e de eventos concretos com duração variável, a explicação mais conforme, o que não quer dizer que seja firmemente segura, consiste em admitir em Deus a dupla causalidade imanente e transitiva.

Considerando exclusivamente os passos do livro I da Ética, que são os que o leitor pode facilmente considerar, verifica-se que Espinosa admitiu a existência de produtos eternos e infinitos da causalidade imanente de Deus, como sejam os modos eternos e infinitos, quer derivados imediatamente da natureza absoluta de qualquer atributo de Deus, quer mediatamente por intermédio de um modo eterno e infinito (I, XXIII). Os modos finitos e particulares, que são os modos da nossa experiência, têm a sua razão de ser, como os modos eternos e infinitos, na causalidade divina, mas não integralmente na causalidade imanente direta, que somente produz efeitos eternos e infinitos. A causalidade imediata que os produz tem de ser uma causalidade finita, e a única causalidade desta natureza coerente com o sistema é a que entende por causalidade divina imanente enquanto Deus é concebido como determinante de um modo particular de qualquer dos seus atributos ou dos modos eternos e infinitos, ou enquanto o modo particular e finito condiciona a existência de outros modos particulares e finitos do atributo a que pertencem (I, XXVIII). Assim entendida, a causalidade finita e transitiva não é independente, mas como que intermediária e tanto mais eficiente quanto as coisas têm menos perfeição ou realidade (1, XXVIII, esc.; Apênd.).

Esta explicação é, porventura, a mais aceitável, mas as dificuldades inerentes à transposição do infinito no finito e do eterno no temporal sempre conferirão incerteza e fragilidade a todas as explicações que se excogitem.

Qualquer que seja ou venha a ser a explicação mais coerente, um ponto cumpre notar: a importância e a simplificação do princípio da causalidade na explicabilidade do processo cósmico. No esquema explicativo de Aristóteles, a explicação cabal exigia o concurso das causas material, formal, eficiente e final. Agora, no esquema da Ética, a causa material era eliminada, porque a matéria não é causa ativa, a causa final, expulsa como ficção da imaginação, e a causa formal e eficiente coincidiam numa só e mesma causa, que é a causalidade imanente de Deus, isto é, o ser e razão de ser de tudo o que existe.

d) Deus e a Natureza naturada (Prop. 29-36)

Ontologicamente, o Mundo foi considerado por Espinosa duplamente: no seu ser e razão de ser, invisíveis aos olhos da face, e na manifestação do ser e razão de ser, sensível aos nossos sentidos.

O primeiro, é a Natureza naturante, ou Deus, que é a única realidade substantiva; o segundo, é a Natureza naturada, inteiramente desprovida de substantividade, com existência puramente modal, isto é, existe como manifestação da produtividade inerente à Natureza naturante, ou Deus.

Há assim, como que dois aspetos da metafísica do existente: o substancialista e o modal, ou por outras palavras, a realidade que é, una, eterna, infinita, imutável, e a realidade que está, diversa, temporal, finita, mutável na sucessão necessária do seu acontecer.

Vimos nas páginas anteriores as condições ontológicas da pensabilidade da Natureza naturante; agora atentaremos, com mira ao essencial e sumariamente, na modalidade da Natureza naturada.

Com distinguir as duas expressões do ser, a reflexão de Espinosa não abandonou jamais o terreno puramente ontológico, isto é, a reflexão metafísica, que não física. Não teve, pois, em vista a observação e a investigação do comportamento da realidade que nos é patente e sensível, nem tão-pouco a respetiva explicação científica ou utilização prática. A reflexão segue sempre o mesmo curso, sem nunca se desviar da teoria geral do ser, mas, como é óbvio, vai incidindo sobre objetivações diferentes, em planos diversos.

Comecemos por atentar na teoria da modalidade, que é a teoria sobre que assenta a conceção da Natureza naturada, para depois tomarmos nota de alguns problemas que esta teoria propõe.

Os atributos, como sabemos, exprimem a essência da substância e, consequentemente, constituem a Natureza naturante, ou por outras palavras, a realidade que existe em si e por si mesma é concebida. Não são consequência do ser de Deus, e porque existem em si e por si são concebidos nenhum resulta de outro ou de outros atributos. São coiguais e coextensivos a essências da natureza divina, pelo que cada um exprime a realidade ou ser da substância (I, X).

Os modos, pelo contrário, são afeções ou modificações da substância, na qual se dão, pela qual são concebidos (def. V), e da qual são «consequência necessária» (1, XXIX). E, pois, próprio da existência modal dar-se, por assim dizer, insitamente, ou por palavras mais rigorosas e expressivas da discriminação ontológica que o nosso verbo ser comporta e que assinalam uma das riquezas do nosso idioma, o modo está e não é, por e com aseidade. Tem ser estante, e não, como a substância, ser essente.


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Vamos corrigir esse problema