Introdução à ética de Espinosa

E que os modos pertencem à ordem do causado e não propriamente à do causal, e portanto estão desprovidos de substantividade própria. A sua essência, como a sua existência, promana de Deus (I, XXIV e XXVI) e é pela causalidade divina que são determinados a agir (I, XXVI; XXVII). A sua existência exclui absolutamente a contingência, isto é, a possibilidade de se darem ou não na realidade (I, XXIX); por isso, quando considerados na sua expressão finita e particular, isto é, separadamente da substância donde dimanam por causalidade imanente e lhes dá razão de ser, as coisas e os acontecimentos concretos, isto é, os modos, tanto na ordem da Extensão como na ordem do Pensamento, apresentam-se como determinados uns pelos outros, num processo de encadeamento sem fim (I, XXVIII).

A ordem por que se sucedem e encadeiam os infinitos acontecimentos da Natureza naturada é imutável e necessária, isto é, não podia ter sido outra (I, XXXIII). Vindas à existência pela produtividade necessária e imutável inerente a Deus, as ideias, isto é, os modos finitos do Pensamento, e os acontecimentos e coisas, isto é, os modos finitos da Extensão, não têm em si, nem entre si, qualquer valor, estético ou ético, que os torne intrinsecamente belos ou feios, morais ou imorais. Existem exclusivamente na categoria do ser. Existem, estão, mas não valem, porque o valer não é uma categoria da realidade ou da idealidade, visto os valores serem somente expressão verbal de apreciações puramente subjetivas da mente de cada um.

Objetividade pura e absolutamente necessária no modo como se dá, sem qualquer valoridade — tal é a visão espinosana da realidade espácio-temporal, mas esta desnudez do Ser, real, ideal ou pensável, não significa que entre os modos finitos não haja diferenças ontológicas, ou por outras palavras, que as ideias, as coisas e os acontecimentos não exprimam graus diversos da realidade.

Tudo o que existe procede necessariamente da natureza de Deus na máxima perfeição, visto resultar «de uma natureza que é dada como a mais perfeita» (I, XXXIII, esc. 2). Na variedade infinita da sua modalidade, as coisas, porém, não são idênticas na capacidade, pelo que umas são mais perfeitas que outras, não em relação à sensibilidade humana, mas em relação à causa donde procedem (Apênd., hic., pp. 94-5). «Estabeleço em primeiro lugar, escreveu Espinosa numa carta (Ep. 23) a Guilherme de Blyenberg, em 13 de Março de 1665, que Deus é, absoluta e efetivamente, causa de tudo, seja o que for, que tem uma essência. Se puderdes demonstrar que o mal, o erro, o crime, etc., exprimem urna essência, concordarei inteiramente que Deus é causa dos crimes, do mal, do erro, etc. Creio, porém, ter demonstrado suficientemente que o que dá forma ao mal, ao erro, ao crime, não consiste em algo que exprima uma essência, pelo que se não pode dizer que Deus seja a causa de tais coisas...

«... Tudo o que existe flui necessariamente das leis eternas e dos decretos de Deus e dele depende continuamente, mas as coisas diferem mutuamente em grau e na essência. Assim, embora o rato como o anjo, a tristeza como a alegria, dependam de Deus, nem por isso o rato é uma espécie de anjo e a tristeza uma espécie de alegria»No processo cósmico, tudo o que advém à existência dá-se numa ordem que resulta necessariamente da natureza de Deus. Como tal, é ordem essencialmente lógica, de causa siue ratio, e não propriamente temporal, porque em Deus não há antes nem depois; e os seus elos como que se encadeiam gradativamente, pois é «efeito mais perfeito o        que é produzido por Deus imediatamente e (...) quanto mais causas intermediárias uma coisa carece para ser produzida tanto mais imperfeita é» (Apênd., hic., 87).

Na sua teoria da modalidade, Espinosa distinguiu modos infinitos imediatos, modos infinitos mediatos e modos finitos.

Os primeiros, resultam imediatamente da natureza absoluta dos atributos, pelo que são infinitos e eternos como ela (I, XXI). Assim, o movimento é modo imediato infinito da Extensão.

Os segundos, resultam dos atributos enquanto afetados por uma modificação eterna e infinita, pelo que também são eternos e infinitos (I, XXII). Assim, a face do Universo na sua totalidade, por cuja expressão Espinosa talvez entendesse a totalidade do movimento no sistema do universo físico (vid. hic., pp. 111-112), é um modo mediato infinito e eterno.

Os terceiros, são as coisas particulares, isto é, os modos dos atributos enquanto são determinados a agir de certa e determinada maneira (I, XXVIII).

Consignamos no apêndice de notas (pp. 109-114) algumas linhas do essencial desta complexa teoria, que propõe variados problemas de incerta interpretação, especialmente no que respeita aos modos finitos. Por isso, dado o objetivo das páginas, em vez de convidarmos o leitor a embrenhar-se no dédalo das subtilezas, mais ou menos conjeturais, próprias da investigação monográfica, parece-nos preferível traduzir em linguagem correntia o essencial desta teoria, despindo-a do vocabulário com que Espinosa a apresentou e largamente utilizamos, tanto mais que na parte II teremos de atentar na relação entre a ordo rerum e a ordo idearum.

No Mundo sensível, Espinosa via somente ideias e ideatos, isto é, objetos a que as ideias se reportam, coisas, acontecimentos, seres viventes, homens, sociedades, Estados, etc., etc. Quer dizer, os seus olhos somente viam, e a sua razão somente considerava, objetos e acontecimentos singulares e concretos. Em parte alguma do Mundo em que vivemos dava pela existência de ideias gerais, de abstrações, de valores, de princípios absolutos, de fins normativos, superiores e independentes da objetividade concreta. A seu ver e a seu juízo todas estas generalidades não passavam de generalizações da cabeça de cada um, porque a única realidade existente é a que é dada pelos objetos e acontecimentos na respetiva singularidade e concretização do seu acontecer, que é sequência necessária da causalidade imanente à substância de tudo o que existe, isto é, Deus.

O Mundo existe como sequência necessária da produtividade divina, mas em si mesmo é como que dessubstanciado, isto é, despojado de realidade ontológica própria, e fenomenizado em plexo fatual de seres e de eventos, que mantêm com o ser único e infinito relações de conexão idênticas às que intrinsecamente reportam a consequência à razão donde ela procede necessariamente, tal como da definição de triângulo resulta que os seus ângulos, de eternidade e para a eternidade, são iguais a dois retos.

Nesta metafísica do concreto, os seres gozam da existência, mas não são a existência, porque cada um, singularmente, seja pensamento, seja objeto, dura tanto quanto pode perseverar no seu ser e enquanto as condições que lhe proporcionaram a existência não cedem a outras condições. Se cada pensamento nasce de outro pensamento, se cada corpo nasce de outro corpo e se dissolve noutro corpo, e assim indefinida e infinitamente, cada ser ou acontecimento do Universo exprime a dupla necessidade de resultar das circunstâncias que lhe dão existência e de durar o tempo consentâneo com a sua própria natureza. A necessidade com que advêm à existência, e, portanto, a forma com que se apresentam, constituem toda a sua perfeição. Não têm outra, como o serem belos ou feios, porque se por perfeição se entender o valor das coisas, isto é, a sua valorização ética e estética, tal perfeição é mero produto da subjetividade de quem aprecia.


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Vamos corrigir esse problema