Introdução à ética de Espinosa

Tal é, segundo Espinosa, a estrutura metafísica da realidade do Mundo em que nos é dado viver. Resume-se em poucas palavras: tudo o que existe e se dá na Natureza é manifestação necessária da essência absoluta de Deus.

São estas palavras como que a síntese do livro I da Ética, mas a síntese ficaria inconclusa sem o juízo acerca do significado da relação de Deus com a Natureza.

O tema envolve várias perguntas. De harmonia, porém, com o que expusemos, limitá-las-emos à seguinte: se Deus é a única realidade essente e atuosa, é o Universo uma congérie de aparências e, portanto, irreal, ou, pelo contrário, tem uma forma de existência compatível com a unicidade do Ser?

A resposta no sentido da irrealidade implica a conceção do panteísmo de Espinosa com a significação de acosmismo, para empregar a expressão de Hegel, na Enciclopédia das Ciências Filosóficas (§ 50). Neste sentido, o sistema, longe de divinizar a Natureza, desdiviniza-a, por compreender e identificar em Deus a infinita diversidade do acontecer cósmico desprovido de substancialidade própria.

Esta maneira de ver, que é partilhada por numerosos intérpretes, encerra uma parcela de verdade. Não a temos, contudo, por inteiramente exata, variando o grau da sua inexatidão em função da medida em que se privar o Universo de realidade. É que Espinosa afirma a existência de realidades «fora do intelecto» (I, IV) e a realidade efetiva dos modos (I, XVI), cuja heterogeneidade resulta da diversidade dos atributos. Não priva, portanto, o Universo de realidade, dado que a ordo rerum é tão real como a ordo idearum, mas isto não quer dizer que lhe confira existência ôntica, em si e por si, porque esta forma de existir somente se dá em Deus.

Assim considerado, o panteísmo de Espinosa, como já acentuámos, não é material, mas de razão, isto é: Deus é a condição da pensabilidade e da explicabilidade ontológica e lógica do Universo, e não o ser real infundido nas coisas e subjacente ao acontecer físico. Tudo o que existe, em Deus (I, XV), e não inversamente, mostrando o contraste que, pelo menos na maneira de ser, as coisas se distinguem de Deus (I, XVII, esc. hic., pp. 46-7), sem aliás dele se separarem autonomamente ou sem ele poderem ser concebidas.

e) Ciência e Teleologia (Apêndice)

O apêndice que Espinosa aditou ao livro I não contém ideias novas, mas é a explicitação clara de algumas ideias nele expostas.

Disse-se já e não sem acerto, que, dada a prevalência da temática ética sobre a temática ontológica e epistemológica, a Ética devia ser lida a partir das derradeiras demonstrações do seu último livro, nas quais se afirma rotundamente a certeza racional do conhecimento que salva, expressa notadamente na conceção do amor intelectual de Deus e no sentimento da fruição da Eternidade. Parafraseando tal modo de ver, pode dizer-se também que as páginas deste apêndice constituem como que a introdução à leitura do livro I, dado que preparam o leitor a apreender mais facilmente a exposição more geométrico da conceção da solidariedade e absoluta necessidade imanente a tudo o que se dá e passa no Universo, que é um dos suportes, senão a trave-mestra, do sistema espinosano.

Com efeito, após a brevíssima indicação dos assuntos capitais tratados, Espinosa entra imediatamente no tema principal do apêndice: a exposição e crítica dos «prejuízos que... poderiam e podem impedir os homens de abranger o encadeamento das coisas (concatenatio rerum) tal como o expliquei...»

Tais prejuízos podem considerar-se sob o ponto de vista da natureza da mente humana; porém, neste apêndice são considerados somente como consequências de um falso pressuposto fundamental: a conceção teleológica do Mundo. Nascendo ignorantes das causas do acontecer e com a tendência a apetecer o que parece ser-lhes útil, os seres humanos imaginam-se livres no exercício da vontade e creem que a atividade humana tem por fim a utilidade e que a própria Natureza foi disposta por um ou alguns Entes transcendentes e omnipotentes a agir em ordem a determinados fins.

A circunstância de Espinosa haver separado este assunto dentre os vários de que se havia ocupado no livro I é, pelo menos, indício de que pretendeu acima de tudo deixar bem expressa a sua conceção do Mundo. Nesta ordem de ideias, pode até pensar-se que deu prevalência à conceção da Natureza naturada em relação à da Natureza naturante —, ou por outras palavras, preferiu acentuar a sua conceção da fatualidade do Universo como expressão modal ou estante do Ser,expondo-a diretamente e à luz indireta da conceção que lhe é antagónica, em vez de acentuar a condição ontológica dessa mesma fatualidade, ou seja o ser essente e atuoso da substância.

Adiando para outra oportunidade o exame deste modo de ver e o das implicações que dele se seguem, notadamente a minimização da interpretação substancialista do sistema, baste agora notar que a eleição deste tema para assunto de um excurso redigido em termos de fácil acessibilidade mostra claramente que Espinosa teve em vista salientar a conceção de que a Natureza é constituída pela fatualidade temporal e espacial, desprovida, portanto, de onticidade própria e independente, e que os acontecimentos e seres que nela se produzem se ligam em «concatenação» absoluta e necessária.

Na Natureza assim considerada nada ocorre por casualidade, por espontaneidade ou em obediência a fins pré-determinados. Tudo advém numa sequência absolutamente necessária, sendo a imanência da causalidade no Universo a ideia que Espinosa quer afirmar como única coerente com a unicidade do Ser, ou Deus, e com a norma do pensar exato, cujo paradigma é a relação que une numa dedução geométrica a consequência à respetiva razão. Daí, a exclusão da causalidade transcendente, exiente, transiente ou finalista, a admissibilidade da interpretação do monismo panteísta com acento mais pronunciado no produzir que no ser da substância, e a conceção do saber como compreensão adequada da realidade. Concebendo a realidade em si mesma como manifestação da «concatenação» absolutamente necessária do existente, cujo nexo causal é intrinsecamente lógico, e portanto absolutamente desprovido de finalidade, de valor ou de desvalor, Espinosa tinha forçosamente de identificar o agir com o existir, o produzir com o pensar, o ser com a perfeição.

Por isso, o saber tem acima de tudo de compreender, e para compreender tem de indagar a validade e não o valioso, dado que as noções de belo e feio, de mal e bem, «nada mais são do que modos de imaginar, nos quais a imaginação é afetada diversamente» (hic., p. 92). O pensamento que pensa com exatidão pensa uma ordem de ideias impessoais, isto é, não pensa acontecimentos subjetivos nem quimeras da imaginação, mas intuições de ideatos, ou por outras palavras, objetos e concretizações da «concatenação» imutável da Natureza una, que a constituição do nosso intelecto intui sob a forma de corporeidade (Extensão) e de idealidade (Pensamento). Se a vida do intelecto puro não é a vida de um intelecto singular, a Ciência não é, nem pode ser, uma representação pessoal da realidade, por mais genial e capacitada que se imagine a mente que a conceba, mas tem de ser a própria realidade. O antropomorfismo da Ciência, ou por palavras atuais de algumas correntes da Epistemologia e da Teoria da Ciência, a legalidade da Natureza como construção do espírito, como síntese cómoda de economia mental ou como paralelo do «tudo se passa como se... », é tão ilógico como o antropomorfismo na conceção do Ser absoluto.


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