Introdução à ética de Espinosa

Por outras palavras mais acessíveis: o espetáculo que o Universo incessantemente nos apresenta, de continuidade, de geração, de extinção e renovo de sucessivas gerações, assim como a variedade infinda de coisas e de eventos que nele se dão, astros e infusórios, consciências e minerais, flores e monstros —, tudo por igual dimana, e com igual necessidade, do ser imanente ao próprio Universo.

Conclui-se em terceiro lugar, que tudo o que ocorre no Universo é absolutamente necessário, isto é, não é nem pode ser ou ter sido casual ou contingente. Deus, isto é, o ser e a razão de ser de tudo o que existe, é livre —, mas é livre no sentido de que sobre ele não atua qualquer força que lhe seja extrínseca, como a fatalidade, nem ele se orienta por qualquer consideração de fim, visto que somente age segundo a lei da sua própria essência. Daqui a negação do antropomorfismo e a de toda e qualquer consideração ou causa final, como contrárias à essência de Deus e à explicação racional do Universo.

Finalmente, em quarto lugar, o paralelismo da ordem modal material e da ordem modal conceptual, isto é, a correspondência entre as ideias e os respetivos ideatos.

Verdade e ser coincidem, porque a idealidade do pensamento e a realidade do ser não procedem ontologicamente de substâncias diferentes mas da mesma única substância ou ser; e além disto, Espinosa admite ainda que a razão é suscetível de um saber absoluto que a si mesmo se intui como absoluto, isto é, o pensamento humano e o pensamento divino têm uma e só essência que lhes é comum.

Deixando de lado os difíceis e complexos problemas relativos às origens e influências que atuaram na elaboração desta conceção monista, bastará notar, em função do ponto de vista destas páginas, que ela implica a identidade de Deus e da Natureza, enquanto esta é entendida como unidade ontológica e razão de ser lógica de tudo o que existe. A designação vulgar desta conceção, depois do Socinianism truly stated (1705), de Toland, é a de panteísmo, mas em rigor a expressão não é correta por conter a possibilidade de sugerir a ideia de que entre o Ser infinito e eterno, isto é, Deus, e os seres finitos não há diferença, e portanto o poder pensar-se que Espinosa identificara Deus com os dados da experiência sensível, ou sejam os objetos físicos, visíveis e tangíveis.

Já se disse que panenteísmo seria, porventura, a palavra próxima do sentido espinosano do Deus sive Natura, mas porque não entrou no uso, limitada como ficou ao vocabulário de Krause, que a criou, pode empregar-se a designação de panteísmo aplicada à ontologia de Espinosa, desde que por tal se entenda, como acertadamente observou Delbos, a identidade de Deus com a unidade de todos os géneros de seres inteligíveis, ou ainda, como o que na Natureza é inteligível e racionalmente explicável pelo entendimento puro. Assim entendido, o panteísmo de Espinosa é um panteísmo de razão, e não de intuição sensível, de imaginação ou de representação.

Qualquer que seja a designação que se dê a esta teoria do Ser -- panteísmo, monismo substancialista, ou ainda acosmismo, na denominação de Hegel —, um facto cumpre ter presente: ela é a propedêutica, ou mais exatamente, o fundamento ontológico do verdadeiro objetivo da meditação de Espinosa, que é de ordem modal. Ele o disse, nestas linhas iniciais do Da Regeneração do Entendimento, de impressionante sinceridade:

Ensinou-me a experiência que tudo o que ocorre frequentemente na vida que habitualmente se leva é vão e fútil. Dei-me conta de que coisas que eram para mim objeto de temor nada tinham de bom ou de mau, senão enquanto o ânimo era por elas excitado; por isso, resolvi investigar se existia algum objeto que fosse um verdadeiro bem, capaz de se comunicar, e pelo qual a alma, renunciando a tudo o mais, pudesse ser afetada exclusivamente —, um bem cujo descobrimento e alcance me dessem a fruição para sempre de uma alegria contínua e suprema.

A reflexão filosófica sistemática culminou sempre, quando não se rematou, em teoria da conduta. Espinosa não se furtou, pois, ao ditame inerente à construtura de uma explicação total do Mundo e da Vida, mas o que torna singular o seu sistema é que a problemática moral foi o impulso inicial da sua reflexão de filósofo. São claras e terminantes as linhas iniciais do Da Regeneração do Entendimento acima traduzidas, corroboradas, aliás, por outro passo deste mesmo livro, que ficou incompleto, no qual afirma que deve ser tido por inútil o que não concorra para a suprema perfeição humana.

A Ética é a confirmação plena da correlação, senão da subordinação, do pensamento puramente teórico à finalidade prática.

O título que Espinosa deu à genial sistematização é de si suficientemente claro —, e que o não fosse, a sucessão das partes que a compõem e o ritmo interno do pensamento mostram sem sombra de dúvida a prevalência da problemática ética sobre a problemática teorética.

Significa esta maneira de ver que a Ontologia, cujas linhas gerais expusemos, e a teoria do conhecimento, que na introdução à parte II será exposta, têm de ser consideradas à luz da problemática ética —, ou por outras palavras, a racionalidade, que vimos ser a característica da sua conceção do Mundo, não é separável da eticidade, que é a característica da sua conceção da Vida.

É que o problema primário e fundamental que Espinosa se propôs, pode formular-se da seguinte maneira: como proceder por forma que eu tenha a certeza de que serei feliz?

Os problemas desta natureza, quando sentidos e pensados com a intensidade com que Espinosa viveu o que foi objeto constante da sua meditação, estão sempre ligados à vivência de uma comoção profunda. É legítimo, por isso, admitir que ele está ligado à excomunhão que em 1656, aos vinte e quatro anos, o expulsou da comunidade israelita, «(...) com todas as maldisoes, que estão escrittas na ley, malditto seja de noite; maldito seja em seu deytar, e maldito seja em seu levantar... Advertindo, que ninguém lhe pode falar bocalmente, nem por escrito, nem dar-lhe nenhum favor, nem debaixo de tecto estar com elle, nem junto de quatro covados, nem leer papel algum feito ou escritto por ele».

No terrível transe, para o qual é crível que tivessem concorrido pensamentos e ditos inspirados em opiniões de Uriel da Costa e de Juan do Prado, a consciência de Espinosa não foi pedir amparo a qualquer outra confissão religiosa.

Expulso de Israel, morto para a família, somente se encontrou consigo mesmo, pedindo à sua razão — e só à sua razão — a lei certa e o norte infalível do pensamento e da conduta.

Teoria e prática da Vida irromperam, assim, como imperativo vital da consciência solitária e amargurada; por isso, quaisquer que hajam sido os sulcos dos Principes de Philosophie e das Méditations Métaphysiques no pensamento do autor da Ética, o impulso que conduziu Espinosa à Filosofia é independente da problemática puramente teorética do fundamento incontrovertível do Saber, que excitou o génio de Descartes.

Para definir, porém, a índole e o sentido da meditação de Espinosa não basta dizer que é moral, porque a qualificação adequada é intrinsecamente religiosa. Como escreveu Victor Delbos, «na maneira por que Espinosa entende a felicidade ou o bem a alcançar faz entrar a ideia do que a consciência religiosa chama salvação. Esta ideia representa o destino do homem como alternativa entre a morte eterna e a vida eterna; envolve a convicção de que, para a obra do novo nascimento, é necessário mais do que a virtude isolada do esforço individual, acima de tudo a cooperação da Potência ou Realidade infinita, à qual somos imediatamente unidos. A salvação está no amor de Deus, na união imediata e indissolúvel da alma com Deus, de tal modo que não ame coisa alguma senão nele e por ele. Esta afirmação repete-se constantemente, através de toda a obra de Espinosa» Conhecimento que salva, e não apenas conhecimento que explica —, tal foi o desiderato supremo e constante de Espinosa, mas a originalidade inconfundível do seu génio consiste em ter fundado o conhecimento que salva no conhecimento que explica e se adequa ao ser e à razão de ser de tudo o que existe, e não nos preceitos de uma crença ou nos dogmas de uma Revelação.


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