Introdução à ética de Espinosa

A racionalidade da sua conceção do Mundo torna-se, assim, inseparável da eticidade da sua conceção da Vida: uma e outra são explicitações da unicidade do Ser.

É que a nossa existência como entes em que se conjugam modos do Pensamento e da Extensão divinas, isto é, como indivíduos que não são seres independentes, somente em Deus, isto é, no Ser único, infinito e eterno, tem a sua razão de ser e o seu termo. Compreender a universal necessidade imanente ao Universo é alcançar o conhecimento que traz necessariamente consigo «a fruição para sempre de uma alegria contínua e suprema», que vimos ser o objeto que no Da Regeneração do Entendimento se propunha inquirir como filósofo. Graças a este conhecimento, a mente emancipa-se da escravidão das paixões, gozando de inalterável serenidade e paz interior, porque coisa alguma pode abater o ânimo de quem é consciente da sua união com o Universo e sabe que tudo quanto existe e se manifesta resulta da necessidade inerente à natureza de Deus.

O saber total e adequado volve-se, pois, em emancipação do espírito; e porque, segundo Espinosa, existe perfeita conformidade entre a operação pela qual Deus nos produz e o ato pelo qual amamos Deus, segue-se que a mente que alcançou o saber pleno se regenera e vive no sentimento atual do gozo da eternidade. A via da salvação é a via da razão, e a Felicidade, o termo do saber.

O panteísmo, que começara por ser uma teoria do Mundo, transmuda-se, assim, em teoria da vida, por permitir logicamente à razão transferir-se da existência ligada à temporalidade, isto é, às preocupações e solicitações de cada hora, para se adequar plenamente ao que é eterno, e portanto fruir o sentimento de uma felicidade sem fim.

O sábio que atingiu o conhecimento pleno, humanas actiones non ridere, non lugere, negue detestari, sed tantum intelligere, porque sabe que o determinismo das paixões é tão necessário como o mecanicismo físico-matemático do Universo material. Alcançando o conhecimento universal intuitivo, com o qual se identifica com a substância divina, o sábio goza do amor intelectual de Deus, isto é, da identidade panteística e imanente em que o humano amor a Deus é amor de Deus para os homens.

Expostas sumariamente as ideias mais gerais que melhor podem servir de introdução à leitura da Ética, cumpre agora entrar na particularidade da parte I, objeto do presente volume; antes, porém, vem a propósito narrar alguns factos respeitantes à elaboração da Ética e tomar contato com os principais problemas que o emprego do método geométrico suscita.

A Ética saiu pela primeira vez a público em Amesterdão, em Dezembro de 1677, dez meses depois do falecimento de Espinosa, corno escrito inicial dos B. d. S. Opera Posthuma, e, pela mesma altura, em versão holandesa, nos De Nagelate Schriften van B. d. S.     

São, pois, contemporâneas a primeira edição do original latino e a primeira edição da versão holandesa, e o facto tem alguma importância, porquanto se apurou que o autor da tradução utilizou um texto latino que não coincidia inteiramente com o que foi dado ao prelo. Contam-se 156 passos divergentes, os quais recaem principalmente nos livros I e II, bastando dizer sobre a sua importância que alguns propõem problemas que o Dr. Carl Gebhardt considerou de interesse análogo aos que resultam do confronto das duas primeiras edições (1781 e 1787) da Crítica da Razão Pura, de Kant.A explicação que logo ocorre é a da existência de alguns manuscritos em mãos diferentes, e com efeito esta é a explicação mais razoável e aceitável em virtude de se saber que a elaboração da Ética se prolongou durante quinze anos, pouco mais ou menos, e que Espinosa proporcionou a alguns amigos a cópia do que ia escrevendo.

A primeira notícia que dela temos é de 1661. Espinosa tinha então vinte e nove anos, e se não iniciou por esta altura a meditação da sua filosofia, ou mais exatamente o aprofundamento do que julgamos ter sido a sua intuição fundamental — a Natureza é Deus desenvolvendo-se a si mesmo segundo leis que lhe são intrinsecamente necessárias —, é deste ano o primeiro esboço da redação do que viria a ser a atual parte I da Ética.

A avaliar pela concisa notícia explicativa da cópia que neste ano de 1661 Espinosa enviou a Oldenburg, o esboceto tinha por objeto a definição de Deus como ser de infinitos atributos cada um dos quais é infinito, isto é, sumamente perfeito no seu género, a noção de atributo, como «tudo o que é concebido por si e em si, de sorte que o respetivo conceito não envolva o conceito de outra coisa»  e as proposições correspondentes à teoria das propriedades da substância da atual parte I.

A cópia enviada a Oldenburg estava redigida more geometrico, justificando-se Espinosa com o facto de este ser o método que mais clare et breviter demonstrava o que tinha em vista. A Ética foi, pois, desde o início pensada para ser exposta à maneira dos geómetras.

Decorridos dois anos, em 1663, estava por assim dizer, e grosso modo, concluída a atual parte I. É possível que tivesse levado mais longe a inquirição e a expressão dos seus pensamentos; mas se assim foi, também é crível que os progressos não tivessem sido grandes, porquanto lhe roubaria tempo a redação definitiva e a revisão da obra que neste mesmo ano de 1663 deu a público, e que foi a única em que por extenso e francamente apôs o seu nome: Renati Des Cartes Principiorum philosophiae Pars I et II, more geometrico demonstratae per Benedictum de Spinosa Amstelodamensem. Accesserunt eiusdem Cogitata Metaphysica.

Provêm do epistolário (Cartas VIII, IX et XII) as concisas notícias relativas à Ética, neste ano, como aliás em todo o decurso da sua preparação. Entre elas, merece destacar-se a da existência de um Collegium de espinosistas em Amesterdão, entre os quais se contavam Lodewijk Meyer, Simon Joosten de Vries, Pieter Balling, Johannes Bouwmeester e Jarig Jelles. Ligados por títulos vários à pessoa e ao pensamento de Espinosa, o filósofo enviava4hes cópia do que considerava definitivo, e que o Collegium discutia entre si e com o solitário de Reinsburgo epistolarmente e, sem dúvida, uma ou outra vez de viva voz. Daí haver quem tenha pensado que a Ética não foi escrita propriamente para o público, mas «para uma pequena roda de doutos», opinião que se nos afigura levar demasiado longe o sentimento da convivência intelectual que estreitou um grupo de admiradores de Espinosa e não tomar na devida conta as circunstâncias que impuseram ao autor da Ética a prudência receosa — Caute, foi a sua divisa — e a precaução de somente se abrir com pessoas que lhe merecessem confiança.

Dois anos mais tarde, em 1665, ocupava-se da «terceira parte da nossa Filosofia», e anunciava a Joham Bouwmeester o envio de uma cópia que iria « até à proposição 80, pouco mais ou menos ». Como a atual parte III tem apenas 59 proposições, é de concluir que a parte III de 1665 compreendia assuntos tratados nas atuais partes III e IV —, o que é confirmado pelo passo da carta (XXIII) de 13 de Março deste ano, dirigida a Wilhelm de Blyenbergh, em que alude à conceção da «Ética, ainda inédita», de que o desejo do homem justo, de que cada qual possua o que lhe pertence, provém do conhecimento que se tem de si mesmo e de Deus, cuja fundamentação constitui objeto das prop. 36 e 37 da atual parte IV.


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