Introdução à ética de Espinosa

A preparação do Tratado Teológico-Político, no qual se contêm algumas dissertações que mostram que a liberdade de filosofar pode ser permitida sem prejuízo da piedade e da paz pública e que ela não pode ser destruída sem que se destrua a paz pública e a própria piedade, que apareceu em 1670, sem indicação de autoria, se por um lado determinou como que a suspensão da redação da Ética, por outro concorreu para que Espinosa refletisse sobre as condições racionais da conduta, e, portanto, para o desenvolvimento dos temas que constituem a atual parte IV.

Tudo isto, porém, é conjetural, porque a única notícia segura é a de que Espinosa deu por finda a redação da Ética pelo meado de 1675. Conheciam-na os espinosistas da primeira hora, que no Collegium de Amesterdão seguiam e discutiam o desenvolvimento da obra, e também a não ignoravam outros amigos recém-vindos, designadamente Tschirnhaus e Schuller.

Esta redação esteve à beira da publicidade. Espinosa deixou por algum tempo o modesto aposento da casa do Pavilijoengracht, na Haia, onde morava e hoje é sede da Societas Spinozana, para ir a Amesterdão tratar da edição com o livreiro Rieuwertsz. Começou, porém, a correr o boato de que o livro já estava no prelo e nele se fazia a demonstração da inexistência de Deus: tanto bastou para que alguns teólogos, secundados por adeptos do cartesianismo, protestassem perante as autoridades. Espinosa, que não podia esquecer os sobressaltos e receios que cinco anos antes lhe havia trazido a publicação do Tratado Teológico-Político, resolveu prudentemente adiar a publicação da Ética, e que ela se fizesse postumamente e sem indicação do seu nome.

O texto de 1675 constava, como o atual, de cinco partes, mas, a avaliar pelas notícias que Tschirnhaus deu de viva voz a Leibniz, a ordem por que estavam dispostas não corresponde ao texto que conhecemos. Ao que parece, era a seguinte: De Deus; Da alma; Da beatitude; Medicina da alma; e Medicina do corpo; e no texto atual é: De Deus; Da origem e natureza da mente; Da origem e natureza das afeções; Da servidão humana ou do poder das afeções e Da capacidade do entendimento ou da liberdade humana.

O confronto logo mostra que Espinosa suprimiu na redação final a parte intitulada Medicina do corpo e que deu nova ordem e novos títulos a algumas das outras partes. Com P. L. Couchoud, pode dizer-se que «o golpe de génio consistiu em separar do segundo livro... o livro da Beatitude, em colocar este no fim da obra, opondo-o aos dois livros sobre as paixões, e em dar a cada um o seu verdadeiro nome: — IV. Da servidão do homem; — V. Da liberdade».

Foi este o texto que, na véspera de falecer, isto é, no dia 20 de Fevereiro de 1677, Espinosa meteu numa papeleira com os demais escritos que vieram a constituir a Opera Posthuma (1677), confiando-os à guarda do seu hospedeiro, o pintor Henderyk van der Spyk, com a recomendação expressa de os entregar, logo que expirasse, ao livreiro de Amesterdão, Jan Rieuwertsz, seu amigo dedicado.

A Ética é, pois, a obra de uma vida, que à respetiva meditação, redação e revisão, aplicou os últimos quinze anos do seu breve trânsito de quarenta e quatro anos de existência, que a tísica consumiu.

Pela conceção, pela densidade de pensamento e pela compenetração do pensar e do viver, a Ética é dos mais profundos e nobres testemunhos da capacidade intelectual do espírito humano; e pela forma expositiva, concisão e relativa escassez de páginas, tem lugar inconfundível no exíguo rol das mais notáveis produções filosóficas de todos os tempos.

A primeira coisa que impressiona o leitor da Ética é a sua redação sob a forma de um tratado de Geometria.

Aparentemente, tem seu quê de excentricidade a exposição de pensamentos filosóficos com a ordenação e a nomenclatura dos Elementos, de Euclides; e, realmente, por ser singular, a analogia com a imorredoira obra do geómetra grego, a que já se chamou, com propriedade, o Evangelho da Razão, concorreu, e não pouco, para o renome da Ética e do seu autor.

Cronologicamente, é possível que a Ética não seja o primeiro livro filosófico com feição geométrica, mas pertence sem dúvida alguma a Espinosa a primeira aplicação do método euclidiano a uma conceção sistemática da realidade do Mundo, da existência humana e do fundamento da vida espiritual.

Tudo leva a crer que colheu a ideia da aplicação do método em Descartes, mas uma vez convencido da respetiva viabilidade, ela adquiriu posteriormente no seu espírito fundamentação própria, tornando-se como que consubstanciai à gestação e desenvolução do sistema exposto na Ética.

Com efeito, as Secondes objections às Meditações Metafísicas (1641) terminavam exortando Descartes a expor as suas conceções «segundo o método dos geometras», ao que este respondeu nas Réponses aux secondes objections que cumpria distinguir duas coisas na «maneira de escrever» dos geómetras: a ordem e o processo (manière) de demonstrar.

A ordem consiste apenas em evitar que o que precede seja conhecido pelo que se lhe segue, isto é, nada deve ser explicado pelo que vem depois.

O processo, porém, pode ser analítico ou sintético.

A análise, ou resolução, «mostra a verdadeira via pela qual uma coisa foi metodicamente achada e faz ver corno os efeitos dependem das causas». Este fora o método das Meditações Metafísicas, e o que Espinosa aplicou no Tratado da Regeneração do Entendimento, como talvez possa dizer-se não com muita segurança, apesar da opinião de Ioachim, porque o propósito de indagar da existência de um bem absoluto que dê ao espírito a felicidade plena e sem fim, em rigor não parece significar privação ou desconhecimento desse bem, mas a posse ou o conhecimento incipiente de uma ideia a aprofundar e a fundamentar.

A síntese, ou composição, pelo contrário, demonstra o que se contém nas conclusões, mediante o encadeamento das definições, dos axiomas e dos teoremas, o qual mostra que o consequente resulta dos antecedentes. É um método que «arranca a anuência do leitor, por mais obstinado e opinioso que seja», mas «não dá como o outro inteira satisfação ao espírito dos que desejam aprender, visto não ensinar o método pelo qual a coisa foi achada».

Descartes acrescentava que o método sintético assim entendido não era perfeitamente adequado às questões metafísicas, pela dificuldade «de conceber claramente e distintamente as primeiras noções», o que não acontece nas «primeiras noções que são supostas para demonstrar as proposições geométricas». Por estas razões, dizia ter antes escrito Meditações «que disputas ou questões, como fazem os filósofos, ou ainda teoremas ou problemas, como os geómetras, a fim de testemunhar desta maneira que escrevi somente para quem queira dar-se à fadiga de meditar comigo seriamente e considerar as coisas com atenção».

Mostram estes períodos que, tanto em Descartes como nos seus críticos, existiu a ideia de se aplicar o método demonstrativo dos geómetras aos problemas da metafísica, mas Descartes não o empregou por pensar que as demonstrações metafísicas não alcançavam tão facilmente a certeza como as demonstrações geométricas, em virtude da imprecisão das noções fundamentais de que elas partiam ou em que assentavam.


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