Introdução à ética de Espinosa

O passo-que Descartes não quis dar, deu-o Espinosa —, sem dúvida, porque a sua razão se não sentiu peada corno a do pensador genial e sem precedente das Meditações Metafísicas, cuja posição e ponto de partida marcam a viragem do pensamento antigo para o pensamento moderno. Concorreram para isso a conjuntura epocal da cultura e o intrínseco ditame dos postulados epistemológicos de Espinosa.

Desde que Galileu estabelecera que havia uma só Física, tão válida para o mundo sublunar como para o mundo celestial, e que o Universo, como haviam intuído os pitagóricos, estava escrito em caracteres matemáticos, e depois da tentativa de Descartes de uma explicação racional do Universo com base na extensão como propriedade fundamental da matéria, o que implicava que a Física fosse considerada sub specie Geometriae, tornara-se como que correlato da conjuntura histórica modernizante o intento de infundir na Filosofia a exatidão matemática, ou, mais propriamente, de converter a Filosofia em ciência de rigor, para empregar uma expressão de Husserl escrita há quarenta anos.

Como testemunham Francisco Sanches, no Quod nihil scitur cuja tradução precisa é, a nosso ver, Da Insciência da Metafísica —, Galileu, com a obra imensa de experimentador e com algumas reflexões sistemáticas, Bacon, com o Novum Organon, Descartes, com as Regulae ad directionem ingenii e com o Discurso do Método para bem conduzir a razão e investigar a verdade nas Ciências, e outros, de algum modo minores, os problemas de metodologia ocuparam lugar de relevo na ordem temática durante a primeira metade do século XVII, tanto mais que abrangiam por vezes, como que rudimentarmente, o domínio da epistemologia, cuja emancipação Locke iniciou em 1690 com o Essai concerning human Understanding e Kant genialmente haveria de firmar em 1781 com a Kritik der reinen Vernunft.

A opção do método geométrico não é, pois, completamente independente da conjuntura científica e de certas orientações metafísicas coetâneas, notadamente de Thomas Hobbes, em cujo De eive (1642) Espinosa colheu sem dúvida sugestões que influíram na construção da sua teoria política e podia ter colhido também o incentivo metodológico de tratar matematicamente os seus filosofemas.

Entre as opiniões extremas de Léon Brunschwicg, de que o método geométrico de Espinosa seria o método específico de Descartes, e não o de Euclides, e a de Leon Roth, de que «a forma da Ética, de facto, longe de ser um tributo a Descartes, é o mais vívido protesto contra a sua autoridade», temos por mais acertado que a sugestão da aplicação do método nasceu das reflexões suscitadas pelas Segundas objeções às Meditações Metafísicas, acima referidas, mas enraizou-se no espírito de Espinosa pelo incentivo de Hobbes e, sobretudo, pelas implicações do seu próprio pensamento pessoal e da sistematização dedutiva que desde o início pretendeu dar-lhe.

Sugerido ou espontâneo, o seu emprego, exigiu, sem dúvida, uma contenção prolongada, heroica e rara, obrigando a atenção a repartir-se, se este é o termo, pela conceção, pela demonstração e pela exposição. Sob este ponto de vista, por mais copioso que se organize o índice das omissões, das repetições, dos paralogismos e das deficiências probatórias, a Ética é obra sem precedente nem paralelo, cujas imitações, mais ou menos raquíticas, raramente se furtam à disformidade da caricatura.

Espinosa aplicou-o como método de exposição e como método de demonstração.

Como método de exposição é suscetível de ser considerado independentemente do assunto exposto, pois qualquer teoria ou conceção, cujos fundamentos, extensão e dimensões sejam conhecidos, pode ser apresentada more geométrico, sem que o expositor vincule o seu assentimento. Como tal, é vestidura e mera disposição formal.

Disto deu Espinosa exemplo digno de atenção, ao expor more geometrico os Princípios de Filosofia de Descartes, nos quais havia conceções que tinha por erróneas.

Na Ética, o caso é diferente, pois a ordenação à maneira dos geómetras é simultaneamente método de exposição e método de demonstração de proposições sempre tidas por verdadeirasSendo assim, método e sistema estão correlacionados, mas não é fácil estabelecer a natureza do correlato e o grau da correlação.

Como em quase todos os temas da filosofia espinosana, especialmente os que se relacionam com a parte I, que é a mais estudada, não faltam as opiniões e juízos divergentes. Assim, e apenas a título de exemplo, pode pensar-se com Ioachim, que se Espinosa empregou o método geométrico foi por ter admitido que toda a causalidade lógica é de ordem geométrica; com Brunschwicg, que embora o método seja apropriado ao sistema, o sistema é independente do método, e ainda com Kuno Fischer, que o método e o sistema se condicionam reciprocamente, a ponto de um ser inseparável do outro.

Em tão discutível assunto, temos por mais admissível o juízo de Windelband de que «foi sobre a base da premissa metafísica do panteísmo que Espinosa se serviu do método geométrico para a solução do seu problema; mas, inversamente, foi este mesmo método que determinou a solução do seu problema e o carácter especial do seu panteísmo. Aplicando este método, veio a pensar a relação da divindade com as coisas singulares com analogia matemática, e se a conceção panteísta do Mundo se caracteriza de maneira completa somente pela relação que ela admite entre a divindade, que é Uno e Tudo, e as coisas singulares, o espinosismo não é mais do que um panteísmo matemático, aliás mais exatamente determinado pelo facto da analogia geométrica ter sido a analogia preferida por Espinosa para explicar aquela relação»Salvaguardando o juízo de o espinosismo ser «um panteísmo matemático», pela interpretação estática que pode sugerir, compreender para Espinosa consiste em conhecer a ligação do efeito à causa, da consequência à razão, da situação da coisa ou da ideia ao conjunto a que adequadamente pertence. A quem assim pensa, ou por outras palavras, jamais deixa de ter a mente fita na concatenatio omnium rerum, nenhum outro método mais coerente que este, como claramente deixou expresso no escólio da prop. XVII, I, ao dizer que da omnipotência de Deus resulta uma infinidade de coisas numa infinidade de modos, da mesma maneira que da natureza do triângulo resulta de toda a eternidade a igualdade da soma dos seus ângulos a dois retos.

O paralelo põe a claro a noção de causalidade como razão lógica, tão necessária e necessitante na derivação das propriedades das figuras geométricas como na geração dos seres e no dinamismo das paixões humanas, cujo estudo, num passo explícito do prefácio da III parte da Ética, levou a cabo «como se se tratasse de linhas, de planos ou de corpos».

O método assim entendido não é um formalismo extrínseco ao sistema. Pelo contrário: é a própria marcha do pensamento demonstrante, ou como diz no Da Regeneração do Entendimento, Methodus nihil aliud esse nisi cognitionem reflexivam aut ideam ideae, a ponto do sistema não se tornar claramente compreensível sem ele, embora possa ser exposto sem o aparato geométrico.


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