Introdução à ética de Espinosa

De modo geral, pode dizer-se como Flliffding que as definições e os axiomas da parte primeira — os axiomas apresentam feição diferente nas diversas partes da Ética — têm o seu fundamento na análise do conceito de Ciência.

A sua expressão não é simples, nem intuitiva a apreensão do seu sentido. É que são o resultado de larga elaboração e assimilação doutrinal, e de conteúdo tão denso que constituem verdadeiras proposições.

Segundo Espinosa, a noção de axioma, em si mesma, é mais extensa que a de definição, em virtude dela abranger as verdades eternas, enquanto que a definição somente é aplicável à essência das coisas ou às afeções delas.

As oito definições enunciam conceitos que estruturam e condicionam a desenvolução do sistema.

Uma, em particular, chama a atenção: é a primeira.

O facto de Espinosa iniciar a tábua de definições com a de causa de si e de colocar em terceiro lugar a de substância, que é fundamental no sistema, parece mostrar que aquela é logicamente anterior a esta e se destina a exercer uma função capital. Qual e em que termos?

A interpretação que se nos afigura mais plausível  é a seguinte: A definição de substância (III), como tal, exprime a ideia do ser incondicionado e absoluto; precedendo-a da definição de causa de si, Espinosa teria significado que este absoluto não é estático, mas essencialmente dinâmico, isto é, causa primeira e infinita, tanto de si mesmo como de tudo o que existe. Assim entendido, haveria uma relação necessária entre a causa de si e a substância, de sorte que a existência da substância seria ato ou consequência da sua potência. O sistema, logo de início, surgiria, pois, com pretensão ontológica e por assim dizer, dinâmica, e não como pura e abstrata dedução, a cuja estratificação lógica mais tarde viesse juntar-se a realidade existente.

Com serem diferentes, as definições e os axiomas têm como que um denominador comum: a discriminação ontológica entre o que existe e é concebível por si e em si mesmo tem a sua razão de ser, ou causa, e o que não existe por si e não é concebível sem a referência a outro conceito. À primeira maneira de ser, chama substância; à segunda, modo.

Esta mesma discriminação subjaz aos sete axiomas, dos quais cumpre fixar a atenção especialmente no I, pelas suas consequências ontológicas, e no IV e no VI, pelas respetivas implicações epistemológicas.

Do axioma I se diz correntiamente, e não sem razão, que ele contém potencialmente a conceção espinosana da realidade.

Pelo axioma IV, o conhecimento legítimo procede da causa para o efeito, e não inversamente —, donde a consequência de que o conhecimento adequado da realidade deve proceder da causa infinita para os efeitos finitos, e não inversamente.

E pelo axioma VI, que equivale ao repúdio da noção tradicional de Verdade — conformidade do pensamento e da coisa —, que é a noção do senso-comum, estabelece, ou mais precisamente, reconhece com Descartes que o pensamento verdadeiro possui validade intrínseca, isto é, por ser verdadeiro é que convém ao ideato, ou objeto pensado, não sendo verdadeiro por convir ao objeto.

Embora já se tenha visto na doutrina deste axioma a confirmação da interpretação idealista da epistemologia espinosana, cremos que a posição de Espinosa foi radicalmente realista e que o idealismo, mormente no sentido kantiano, é incompatível com as premissas da sua teoria do conhecimento. É que, em seu juízo, o pensamento somente reconhece, pelas notas intrínsecas ao próprio pensamento verdadeiro, a existência de certas adequações, conformidades ou relações, e não, como Kant, que o condicionalismo a priori do pensamento organize os dados da experiência sensível e dite a lei às coisas.

A capacidade inerente ao pensamento humano de refletir sobre si mesmo não exclui de maneira alguma a anterioridade do Ser em relação ao pensar. Pelo contrário; é um dado primário e fundamental do sistema de Espinosa, e por o ser, o emprego do método geométrico e, consequentemente, o estabelecimento prévio das definições e dos axiomas, está inteiramente relacionado com o realismo da sua teoria.

Como adiante veremos, noutra introdução, Espinosa concebeu o conhecimento perfeito, por um lado, como encadeamento de consequências reportadas ao princípio donde resultavam, e por outro, como conformidade com uma ordem de coisas que se condicionam analogamente às ideias. Por outras palavras: a realidade no seu conjunto, assim na ordem conceptual como na ordem fatual ou existente, é concebida como sistema que depende e resulta do ser único e infinita mente infinito, isto é, a Substância, causa e razão de ser de tudo o que existe.

O método geométrico era o método mais adequado a estes pressupostos ontológicos e epistemológicos, por ser o que mais claramente expressava a necessidade pela qual de uma dada ideia se deduziam as propriedades ou consequências que ela contém.

Por isto, as definições e axiomas desta parte primeira da Ética contêm potencialmente a desenvolução do sistema, que, visto a esta luz, e como que na sua feição estática, que não é a expressão integral do sistema, se apresenta como a dedução analítica e a priori dos princípios estabelecidos.

b) Teoria da substância e sua identificação com Deus (Prop. I-XIV)

É de velho uso o termo de substância. Grosso modo, no vocabulário filosófico correntio, derivado da Escolástica, ele designa o que permanece nas coisas através das sucessivas alterações delas, e das quais é como que suporte. Sujeito e substrato, são palavras que estão ligadas a este sentido, mas que exprimem insuficientemente a noção espinosana de substância, porque embora esta implique a noção de substância como sujeito lógico de inerência, sem a qual não teria sentido a aplicação do método geométrico, o sistema de Espinosa não pode ser considerado uma sistematização de géneros, de espécies e de ideias singulares hierarquicamente dispostas por graus de subordinação lógica, porque pretende ser a explicação da realidade no seu conjunto, isto é, a Natureza como totalidade unificada de seres e de eventos,    

Por isso, a substância tem no vocabulário espinosano um sentido inteiramente diferente do sentido correntio, e cuja definição convém que o leitor tenha presente. É a seguinte: «o que existe em si e por si é concebido, isto é, aquilo cujo conceito não carece do conceito de outra coisa do qual deva ser formado» (Def. III).

Constitui esta definição o ponto de partida do sistema, se o considerarmos como dedução analítica, pois contém a afirmação da existência de urna realidade universal e absoluta, lógica e ontologicamente anterior às suas manifestações, ou modos na linguagem de Espinosa, e que tem em si mesma a sua razão de ser.

Assim entendida, a substância tem propriedades e atributos, que a razão discrimina mas que na realidade substantiva (isto é, não modal) se não separam.

Seguindo a ordem da Ética, note-se em primeiro lugar que é inerente à substância, como tal, ser idêntica, incriada, infinita, única e necessária.


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