II - Discurso proferido no salão de conferências da Biblioteca Pública de Braga, no dia 10 de Novembro de 1951

A comemoração digna da memória de um filósofo consiste na compreensão desapaixonada do seu legado de ideias, e tal compreensão somente se atinge quando o juízo se dirige ao essencial, sem se deixar extraviar pelos atalhos fáceis e superficiais das aparências. Separar o que pertence à superficialidade da opinião do que pertence ao profundo das ideias constitui, com efeito, o desiderato supremo do trabalho compreensivo e, ao mesmo tempo, o preito máximo que pode render-se ao génio de um filósofo. É que uma Filosofia vive na História somente pelo princípio que a anima; por isso, no pensamento de um filósofo o   que importa é o que nele é original e irredutível, isto é, o que deixa de ser produto da História para passar a ser criador de História e, portanto, dado indispensável à compreensão dos recursos, possibilidades e desenvolução do espírito humano.

Enquanto produto, o pensamento filosófico nasce e dá-se temporalmente, isto é, em determinadas circunstâncias e sob certos desígnios que o situam e limitam; e enquanto criação, suscita atitudes e juízos transtemporais, isto é, atitudes que retomam e repensam os problemas e respostas fora e independentemente do hic et nunc das categorias da História.

Este é o caso de Francisco Sanches. O pensador independente que hoje comemoramos e reiteradamente se disse «diocesano bracarense», como que para significar que tinha em maior conta a personalidade religiosa do que a personalidade política, não cogitou um sistema original nem o seu pensamento abriu clareiras no terreno do saber exato ou no da especulação metafísica. Situado em épocas de transição e em tempos instáveis, o pensamento de Sanches com ser decidido, claro e penetrante, não foi autenticamente genuíno nem se completou a si mesmo com íntegra coerência. A sua formação mental operou-se como que no compromisso do escolasticismo e do humanismo, a sua problemática moveu-se hesitantemente entre a herança de Aristóteles e o apelo dos tempos novos, a sua obra de escritor tem facetas de comentador livresco e de pensador independente, a sua atitude filosófica prestou-se e presta-se a interpretações diferentes e até antagónicas.

Dois temas dominaram a sua mente de filósofo: a teoria constituinte do Saber e a teoria explicativa da Natureza. De urna e de outra sabemos incomparavelmente mais e melhor o que teve por erróneo do que o que teve por certo, de sorte que a génese do seu pensamento e o teor profundo do que deu sentido e unidade às suas reflexões são e serão temas de controvérsia. De controvérsia, sem dúvida, mas também de imprescindível indagação e esclarecimento, porque Sanches não teria sido filósofo se o seu pensamento não tivesse arrancado de dado ponto de partida e se não tivesse desenvolvido coerentemente, de harmonia com uma intuição ou conceção fundamental. Toda a atividade filosófica criadora radica inevitavelmente em dada ordem de conhecimentos, que, por assim dizer, lhe imprimem feição peculiar: S. Tomás de Aquino não é compreensível sem o primado da Teologia, Descartes, sem o fulgor da demonstração matemática, Kant, sem a exatidão das leis da Física e da Mecânica Celeste, Hegel, sem o descobrimento da historicidade do pensamento, Bergson, sem o mundo germinante da Biologia. Criador original ou meditador escrupuloso, filósofo algum pode furtar-se ao ditame dos conhecimentos que lhe nutrem a reflexão, e no caso de Sanches, apesar da formação humanista, bem vincada no comentário In Physiognomicon, falsamente atribuído a Aristóteles e de cuja autenticidade ele foi o primeiro a duvidar, e de não ser hóspede na Geometria e na teoria da Esfera, não oferece dúvida que foram os conhecimentos médicos que lhe despertaram a problematicidade filosófica e lhe sugeriram a intuição que deu unidade às suas reflexões.

Para os coetâneos, Sanches foi acima de tudo «o céptico» e tem sido em torno do cepticismo que principalmente se têm movido até hoje a crítica e a história do pensamento sanchesiano. Assim, por exemplo, Dilthey não hesitou em escrever que o cepticismo de Sanches arrancara do estado da polémica entre Carnéades e os estóicos e a determinação das fontes de alguns argumentos suscitou até o problema de saber se Sanches fora o último dos céticos gregos ou o primeiro dos céticos modernos.

No que toca à opinião de Dilthey, creio que o insigne pensador, que possuiu o génio admirável das correlações espirituais, se equivocou neste particular. Sanches teve satisfação em se ocultar na discussão com Clávio sob o pseudónimo de Carnéades, recorreu largamente ao arsenal dialético dos céticos gregos e é admissível que a sua teoria do conhecimento deva mais de um conceito à do filósofo da Nova Academia; no entanto, a advertência ao leitor do Quod nihil scitur de que este livro se ocupa dos Grauiora Philosophiae capita que servem de fundamento à Medicina, mostra que o pensamento de Sanches não arrancou de livros, isto é, do pensamento de outrem, mas da sua própria experiência pessoal e teve por objetos uma teoria da Ciência e uma teoria da Natureza compatíveis com o tipo de saber que o médico aplica. A correlação da Filosofia com a Medicina ocorre por vezes na pena de Sanches — ut Medicinam Philosophiae coniungamus, diz no De longitudine et brevitate vitae —, em termos que claramente denotam que a sua reflexão de pensador partiu da Medicina para a Filosofia e não às avessas.

Daqui o sensismo da sua epistemologia e o dinamismo vitalista da sua teoria da Natureza que, apesar de relacionados, assentam em fundamentos intuitivos autónomos.

A intuição da teoria do saber «firme e fácil», a cuja luz tem de ser vista a argumentação crítica do Quod nihil scitur, diz respeito à inacessibilidade da Ciência perfeita, em virtude do espírito humano somente poder reconhecer o que lhe é dado imediatamente na percepção e nos limites dela.

É esta intuição que abre a via de compreensão da atitude de Sanches, do que escreveu com objetivo filosófico e principalmente do que tencionava escrever e não sabemos ao certo se escreveu, o De anima e sobretudo o De examen rerum, que em parte pode ser reconstituído e a cujo respeito se podem estabelecer mais bem fundadas ilações do que em relação ao Método. Coerentemente com o ditame desta intuição, Sanches cogitou, como já dissemos, urna teoria do saber e uma teoria da Natureza.

A teoria do saber está exposta principalmente no Quod nihil scitur, cujo título logo anuncia mostrar « porque nada se sabe », de sorte que é apresentado corno justificação do cepticismo radical. O anúncio, porém, não corresponde à realidade, porquanto Sanches procura demonstrar a inconsistência de quatro conceções da Ciência, concluindo por indicar a necessidade da Ciência ser fundada em base firme e fácil: Mihi namque in animo est firmam, et facilem quantum possim scientiam fundare, como declara na derradeira página do seu livro famoso. O cepticismo não é, pois, radical, afirmando-o Sanches somente em relação às conceções aristotélicas do saber como coisa demonstrada (habitus per demonstrationem acquisitus) e como coisa cujas causas se conhecem, à conceção platónica do saber como recordação e à que ele próprio propõe como expressão acabada do dogmatismo: a ciência é o conhecimento perfeito da coisa. Levaria longe a análise dos argumentos de Sanches contra cada uma destas conceções assim como a das respetivas fontes, a bem dizer limitadas até ao presente aos céticos gregos, com desatenção à influência de Galeno e dos filósofos naturalistas da Renascença; baste somente acentuar que Sanches não argui contra a possibilidade do conhecimento em geral mas contra o que certas conceções dizem ser cognoscível. É singular que Sanches se apresente na dedicatória do Quod nihil scitur a Diogo de Castro como combatente do erro — falsitatem expugnantunís miles — e que a primeira afirmação deste livro consista em referir «o que não existe», ou sejam os átomos de Demócrito, as Ideias de Platão, os números de Pitágoras e os Universais de Aristóteles; e não é menos singular que a derradeira página deste mesmo livro anuncie o propósito de fundar a Ciência em base «firme e fácil».


?>
Vamos corrigir esse problema