II - Discurso proferido no salão de conferências da Biblioteca Pública de Braga, no dia 10 de Novembro de 1951

A correlação destes factos é de per si suficiente para mostrar que o que Sanches teve por incognoscível, e portanto, acerca do qual «nada se sabe» é a substanciação de conceitos, de universais e de essências meramente inteligíveis, numa palavra, toda a epistemologia que para explicar a realidade sensível recorre a realidades invisíveis, no expressivo dizer platónico; e por inacessível, a existência de verdades absolutas, dado suporem a capacidade absoluta da razão.

O que ele procura pôr a nu, com veemente convicção, não é a impossibilidade intrínseca do saber mas a inconsistência da metafísica objectivista, a improcedência da metodologia que, como ele diz na Segunda carta-consulta a Clávio, «quer demonstrar pela razão o que é evidente para os sentidos» e, sobretudo, a vacuidade do formalismo lógico dos sumulistas e a inanidade do saber que se constitua a partir dos conceitos, como a arte combinatória que Giordano Bruno muito provavelmente ensinou em Toulouse e não menos provavelmente foi um dos motivos que levaram Sanches a escrever este requisitório contra o falso saber.

Visto a esta luz, não é o Quod nihil scitur do título da primeira edição que exprime exatamente o pensamento do autor, mas o título que Sanches, ou outrem por ele, deu à segunda edição, saída em Francfort, em 1618: De multum nobili et prima universali scientia quod nihil scitur, ou seja o elenco de razões probatórias da insciência da Metafísica.

Situando-se no concreto e no imediato das representações mentais que se ofereciam como fundamento e expressão definitiva do saber e resolvido a alcançar por si explicações satisfatórias, Sanches «revocou tudo em dúvida, como se até então nada se tivesse dito», para empregar as suas próprias palavras, que quase são as mesmas que Descartes empregou cinquenta anos depois. Psicologicamente, a sua posição foi nesse momento análoga à do pensador das Meditações Metafísicas, sendo crível que o genial filósofo francês tivesse tido presente a página vívida e sugestiva da epístola ao leitor do Quod nihil scitur; a orientação ulterior do pensamento foi, porém, diferente nos dois filósofos. Descartes, olhos fitos nos objetos ideais e na irresistibilidade lógica da demonstração matemática, superou a dúvida pela apreensão do cogito, pela análise das implicações lógicas que o cogito desentranha e pelo afastamento provisório do cogitatum, isto é, do conteúdo dos pensamentos. Sanches, pelo contrário, olhos fitos na conformidade da representação com o respectivo objeto, em vez de procurar a superação da dúvida pelo cogito, isto é, no pensamento que cogita, procurou-a nos cogitata, isto é, na coisa dada no pensamento que cogita. Por isso, Descartes iniciou a marcha da sua filosofia seguindo a via do idealismo e Sanches não abandonou um só momento o terreno do realismo ingénuo, admitindo que assim corno a realidade somente permite a distinção entre coisas assim também os conceitos somente se distinguem pelas coisas e realidades simples a que se reportam.

A reflexão filosófica de Sanches nasceu, pois, extrovertida, voltando-se logo de início, imediata e diretamente, para o que a tradição e a opinião comum ofereciam como expressão e fundamentação da teoria do Saber. Por isso, não deu a fundamentação da sua epistemologia nem a da conceção de uma teoria da Ciência «fácil e firme» —, e até deve acentuar-se que a não podia dar em primeiro lugar, por não ser possível edificar a teoria da Ciência somente sobre a empiria do mundo das sensações, e em segundo, por não ter vinculado a observação à demonstração e ao cálculo, contentando-se com a simples mostração dos sentidos.

Destarte, Sanches não chegou verdadeiramente a concretizar em conceitos o que teve por certo, mas foi expansivo em manifestar o que teve por erróneo relativamente à teoria do Saber.

No Quod nihil scitur enfrentou as conceções dogmáticas da Ciência, no Carmen de Cometa, a legitimidade dos vaticínios astrológicos, e no De divinatione per somnum ad Aristotelem, o conhecimento profético, onírico e demoníaco, ou sejam as pretensas formas de conhecimento obtido por via não-racional.

Estes dois últimos escritos como que estabelecem a ponte de passagem da teoria da Ciência para a teoria da Natureza.

O Carmen de Cometa, com efeito, assenta no pressuposto de que é condição da pensabilidade do Mundo a existência da «Natureza eterna», isto é, de uma ordem universal na qual tudo se encadeia, salvo as ações humanas, que são livres, de sorte que, dadas certas causas se seguem normalmente certos efeitos coerentes com essas causas. No Carmen, como no De longitudine et brevitate vitae, filosofia e explicação da Natureza identificam-se, por forma que o filosofar consiste em cogitar urna Metafísica que seja ao mesmo tempo urna Física, dado que Deus e a Natureza não agem em vão, como diz no último destes dois livros: Deus et Natura nihil faciunt frustra.

Sanches não teve em vista o ideal científico que Arquimedes estruturou, Galileu reanimou e veio a ser a matriz da Ciência e da Técnica, do qual ao presente somos receosos beneficiários, nem lhe devemos descobrimento algum no campo do saber exato; por isso, a sua teoria da Natureza, aliás conhecida deficientemente por se haver perdido o Examen rerum, tem de ser vista à luz do naturalismo anti-aristotélico da Renascença, especialmente dos filósofos italianos seus contemporâneos. No essencial, a teoria física de Sanches exprime-se pelas ideias da unidade da Natureza e de universalidade da causalidade segunda, válida igualmente para o mundo celeste e para o mundo sublunar, e pela conceção do calor e do húmido como qualidades primárias e positivas dos corpos. No fundo, concebeu uma teoria dinamista do Universo, no qual a matéria que o povoa é animada pelo mesmo sopro de vida e obedece às mesmas leis gerais.

O anti-aristotelismo desta conceção é tão óbvio como o da teoria do Saber. Numa e noutra manifestou Sanches o que constitui a singularidade da sua posição na história do pensamento do século XVI: o radicalismo da crítica ao dogmatismo tradicional e a exigência de uma nova disciplina metodológica e de novos objetos à atividade do pensamento. A sua mente viu com admirável clarividência que já se não podia ser filósofo nem sábio com o saber livresco da tradição e que a Ciência carecia de ser fundada em bases radicalmente firmes e de marchar com rumo a novas explicações. Impunha-se, a seu ver, uma instauração e não uma restauração. Res ipsas examinare coepi, qui verus est sciendi modus, diz no Quod nihil scitur, e neste ire ad res, voltando costas ao ire ad terminos da tradição escolástica, se descobre o objetivo inicial da reflexão de Sanches. Inicial, mas não continuado nem primacial, porque a mente de Sanches, obediente talvez à tendência combativa e polemizante da sua índole natural, deteve-se quase exclusivamente na refutação, desatento à lição de sempre de que só se suprime bem o que melhor se substitui.

Do que rápida e sumariamente temos dito se tira a conclusão de que a reflexão de Sanches não foi verdadeiramente instauradora e constituinte; situando-se polemicamente contra algumas correntes da filosofia do seu tempo, teve por alvo capital desvincular a teoria do saber de sistemas de ideias que já não tinham poder criador.


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