III - Discurso proferido na sessão plenária da Academia das Ciências de Lisboa, no dia 13 de Dezembro de 1951

Iniciou esta terceira atitude Ludwig Gerkrath, em 1860, com a fundada e circunspecta monografia que intitulou Franz Sanchez. Ein Beitrag zur Geschichte der philosophischen Bewegungen im Anfange der neueren Zeit. O esclarecido privat-docent de Bana procurou na obra de Sanches o testemunho representativo da transição da escolástica para a filosofia moderna; consequentemente deteve-se principalmente na indagação do que no pensamento sanchesiano foi hostil à conceção escolástica da Ciência e propício à instauração da conceção positiva do saber.

Negativismo cético e positivismo construtivo, ou por outras palavras, uma pars destruens, e outra construens, tais são as duas faces que a partir de Gerkrath serão predominantemente objeto de juízo e de preferência. Aqui e além, surgiam algumas observações, no geral superficiais, acerca das relações da dúvida cartesiana com a dúvida do Quod nihil scitur, mas, seguindo a ordem do tempo, foi Menéndez y Pelayo quem deu um passo audaz, em 1891, ao ocupar-se De los orígenes del criticismo y del escepticismo y especialmente de los precursores espailoles de Kant como tema do seu discurso de recepção na «Real Academia de Ciencias Morales y Políticas» de Madrid. Para o insigne historiador e crítico, Sanches não fora um cético vulgar, porque havia sido um «verdadero precursor del criticismo positivista», dado que o seu ceticismo, análogo ao dos «medicos alexandrinos sucessores de Enesidemo», «es pura y sencillamente la expresión meditada de aquel aforismo capital entre los positivistas: la relatividad del conocimiento».

Anos depois, em 1904, Emilien Senchet, detendo-se principalmente nos problemas da origem e do significado do cepticismo do Quod nihil scitur, deu ensejo a novo curso de opiniões com o Essai sur la méthode de Francisco Sanches. Como resultado das suas indagações, dignas de apreço mas que já não satisfazem as exigências atuais, Senchet concluíra pelo concurso de três elementos na elaboração do sistema de Sanches, ou sejam o racionalismo positivo de Aristóteles, o empirismo de Galeno e o ceticismo relativo de Sexto Empírico. Daí, o haver formulado a seguinte pergunta acerca do significado histórico-filosófico do autor do Quod nihil scitur: foi Sanches o último dos céticos gregos, e portanto «o continuador longínquo» da atitude mental das Hipotiposes Pirrónicas, ou o primeiro em data dos «espíritos críticos», e portanto «o precursor mais ou menos afastado de Bacon, de Descartes e sobretudo de Kant»? A sua resposta orientara-se neste último sentido, por admitir que a constituição da Filosofia como Ciência havia sido aspiração de Sanches, cuja atitude de médico e de filósofo lhe parecia ser «par bien des côtés l'ancêtre de nôtre Claude Bernard qui unissait dans une synthèse compréhensive les suggestions de l'expérience aux idées directrices de l’esprit».

O método que Menéndez y Pelayo inaugurara, de interpretar o pensamento de Sanches à luz de conceções ulteriores, frutificara, e continua frutificando, em miragens vistosas, com tanto de surpreendente como de ilusório, pois é paradoxal, para não dizer absurdo, que o ante-metafisicismo e o sensismo de Sanches possam ser antecedentes históricos ou lógicos do criticismo de Kant ou do experimentalismo de Claude Bernard, no sentido de dependência ou de proximidade inerente à noção de influência.

Finalmente, em 1935, o Sr. Joaquim Iriarte trouxe nova consideração com a indagação histórica das vicissitudes e das interpretações do pensamento de Sanches, principalmente em ordem à formulação do problema das relações da dúvida cartesiana com a teoria de dúvida exposta no Quod nihil scitur. A correlação das duas conceções era um velho tema em que muitos falavam e ninguém examinara com detença, desde os dias longínquos de 1641, logo após a publicação das Meditações Metafísicas, quando Hubner escrevera a Marin Mersenne que as «dificuldades» exageradas que Sanches opusera à adquisição de conhecimentos certos ficavam aquém das «dúvidas hiperbólicas» de Descartes. Creio que o amigo e editor de Coménio na Inglaterra julgou acertada e como que definitivamente; o Sr. Iriarte, porém, na sua tese de Bona, que intitulou Kartesischer oder Sanchezischer Zweifel? Ein kritischer und philosophischer Vergleich zwischen dem Kartesischen «Discours de la Méthode» und dem Sanchezischen «Quod nihil scitur», não julgou, preferindo estabelecer problemas e concorrer com informes seguros para o esclarecimento de um subtil e complexo assunto que aguarda quem o verse com profundidade.

Tais são, em resumo conciso, os marcos capitais da marcha das apreciações e dos pontos de vista relativos à obra filosófica de Sanches. Levaria longe o exame de cada um, sem aliás se atingir qualquer resultado seguro. O conhecimento de todos eles concorre, sem dúvida, para a prefiguração de Sanches e, principalmente, para a consciência das dificuldades a vencer, mas a única via que pode conduzir à intimidade do seu pensamento é a do contato direto com a obra em si mesma e com a respetiva posição no terreno cultural em que ela nasceu e se formou. É o que vamos tentar, com severidade de método e sob a convergência de diversos pontos de vista.

A atividade filosófica de Sanches foi dominada por problemas de significação científica, com exclusão dos temas religiosos e morais. Preocuparam-no a teoria do Saber e a explicação da Natureza, mas não a conceção da Vida e o sentido da conduta. Daqui, desde logo, a singularidade da problemática de Sanches em relação à dos céticos franceses do seu tempo, designadamente Montaigne e Charron, e o sentido docente da sua obra, que, com exceção do Carmen de cometa, como que responde a solicitações do ensino e a instâncias da cultura da época.

A sua mente de filósofo, como acabo de dizer, ocupou-se de dois temas capitais: a teoria constituinte da Ciência e a teoria explicativa da Natureza. A problemática da teoria da Ciência responde principalmente o Quod nihil scitur e deveria responder o De modo sciendi, que se perdeu ou Sanches não ultimou, e responde subsidiariamente o De divinatione per somnum ad Aristotelem; e à teoria da Natureza devia responder principalmente o Examen rerum, cuja publicação Sanches anunciou corno próxima e cuja estrutura é, em parte, possível reconstituir, e respondem subsidiariamente os outros escritos, principalmente o Carmen de cometa e o De longitudine et brevitate vitae.

As duas teorias enlaçam-se ou, mais propriamente, implicam-se mutuamente, porque a conceção sensista do conhecimento, que é a tese positiva do Quod nihil scitur, como que serve de suporte gnosiológico à teoria explicativa da Natureza, na qual o calor e o húmido são considerados como factores do dinamismo físico. Além de se enlaçarem geneticamente, as duas teorias respondem a exigências epocais da consciência reflexiva. Depois das imensas mutações operadas pelo movimento espiritual da Renascença, a justificação racional da verdade científica e a explicação da Natureza por princípios imanentes à própria Natureza, juxta propria principia na expressão significativa de Bernardino Telésio, impunham-se instantemente no último quartel do século XVI, que é a época da elaboração do pensamento de Sanches e da redação dos escritos que deu a público. Os espíritos mais atentos e penetrantes reconheciam que a lógica tradicional, orientada no sentido do formalismo silogístico, se convertera em estéril ars disputandi, anelando, com mais ou menos veemência, pela constituição de uma ars inueniendi, que em vez de ire ad terminos ensinasse ire ad res, no sentido da observação e da interpretação nos limites da própria observação. Ninguém, a bem dizer, se furtou à instância deste apelo, incluindo os próprios sequazes da filosofia tradicional, pois é por então que se inicia o movimento de restauração que veio a formar o que com propriedade se tem designado de Segunda Escolástica. Na mente de Sanches, o apelo exprimiu-se por estas duas interrogações capitais: são as conceções tradicionais da Ciência compatíveis com a explicação científica «firme e fácil», para empregar o seu próprio dizer? E a teoria física de Aristóteles inteiramente compatível com a realidade observável? Primeira pergunta respondeu com uma teoria do Saber; e à segunda, com uma teoria da Natureza. Atentemos no que cada uma apresenta de estrutural e de próprio.


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Vamos corrigir esse problema