III - Discurso proferido na sessão plenária da Academia das Ciências de Lisboa, no dia 13 de Dezembro de 1951

Levaria longe a exposição e análise dos argumentos de Sanches, assunto aliás deficientemente investigado, pois somente se fez o paralelo com as Hipotiposes Pirrónicas de Sexto Empírico, com esquecimento de outras fontes, designadamente alguns escritos de Galeno. Baste somente acentuar que Sanches dedica a maior parte das páginas do Quod nihil scitur à refutação de Ciência como conhecimento perfeito do objeto e que esta refutação tem por base os «trapos» de Enesidemo e os argumentos de Agripa.

A inegável dependência não destrói a relativa originalidade de Sanches na ordenação e desenvolvimento dos argumentos e, de modo geral, na crítica a que submeteu as outras definições da Ciência, mas autoriza o juízo de que o Quod nihil scitur repensa e aplica à teoria aristotélico-escolástica da Metafísica corno ciência primeira essencial e fundamental, a argumentação dos céticos do começo da nossa era contra o dogmatismo dos estoicos. De Enesidemo, principalmente, porque como o cético de Alexandria, Sanches procurou fundamentar a impossibilidade do conhecimento perfeito relativamente ao objeto, ao sujeito cognoscente e à relação de um para o outro, e como ele rematou a crítica da definição de Ciência como conhecimento perfeito do objeto concluindo que a noção de conhecimento nela implícita não é possível pelo discurso racional, pela experiência dos sentidos e pela conexão do discurso e da experiência. O inegável paralelo não atinge, porém, o objetivo do Quod nihil scitur, que não pode ser restringido à refutação do conceito de Ciência como conhecimento perfeito do objeto. É que Sanches não se propôs demonstrar de modo geral e radical a ilegitimidade de todo e qualquer juízo predicativo e afirmativo, mas somente a inconsistência do conceito de verdade universal, fundado em essências inteligíveis e a partir das quais se possam alcançar outras verdades.

Visto a esta luz, e tendo em consideração a tendência polemizante de Sanches, a qual deu alento à maior parte das páginas filosóficas que escreveu, sorri-me a hipótese do Quod nihil scitur visar particularmente a arte mnemónica e combinatória que, como é de crer, Giordano Bruno ensinaria em Toulouse pelos anos em que Sanches ultimou este seu livro. Se assim fosse, o recurso ao arsenal das Hipotiposes Pirrónicas de Sexto Empírico teria carácter subsidiário, e portanto Sanches seria cético somente em relação à conceção da ciência que se constitua analítica ou combinatoriamente a partir de essências inteligíveis ou da definição de conceitos: e se a hipótese não é exata, clamam ostensivamente contra a integração do Quod nihil scitur na linha continuadora do ceticismo helénico o facto de Sanches jamais concluir pela acatalepsia, ou incompreensão do juízo verdadeiro, e pela epoché, ou suspensão do juízo, e a circunstância de rematar a refutação das quatro definições de Ciência anunciando na derradeira página do Quod nihil scitur o propósito de fundamentar a Ciência em base firme e fácil, sem arquitétipos, dados a priori e predicamentos: Mihi namque, in animo est firmam, et facilem quantum possim scientiam fundare.

Do que vimos dizendo se conclui que o título abreviado de Quod nihil scitur, com que este livro veio pela primeira vez a público, em 1581, é afortunado pela curiosidade que desperta mas induz em erro, por prometer um ceticismo radical e universal que realmente não dá; e que o título exato é o da segunda edição, saída em 1618 em Francfort, na qual o «porque nada se sabe» é referido somente à Metafísica enquanto ciência do ser e dos primeiros princípios: De multum nobili et prima universali scientia quod nihil scitur. Assim se confirma que o ceticismo de Sanches nasceu extrovertido, voltado para o que se ensinava nas escolas e era tido por certo, e que, intrinsecamente considerado, não foi, como o cepticismo de Descartes, provisório e metódico. Foi, incontestavelmente, terminante e definitivo, mas somente em relação aos pressupostos e fundamentos da teoria aristotélica da Ciência e à metodologia da ars disputandi da lógica escolástica ou da combinatória de conceitos. Não duvidou, porém, da possibilidade da Ciência se constituir independentemente da Metafísica e da Ontologia, com base e nos limites da perceção.

Negue vero credeas me per, cognoscere, intelligere perfectam scientiam, sed sensibilem tantum notitiam, diz no De divinatione per somnum ad Aristotelem, argumentando contra a demonomania de Cardano. Anos depois do Quod nihil scitur reiterava, assim, quase pelas mesmas palavras, a impossibilidade da constituição de uma «ciência perfeita», mas o que entendeu por notícia sensível em contraste da ciência perfeita, não se sabe, nem pode vir a saber-se, devido à perda dos manuscritos, se é que chegou a ultimá-los. Consequentemente, só conjeturalmente é possível avaliar a expressão conceptual que deu à teoria sensista do conhecimento, a quota que para a respetiva elaboração foi buscar aos céticos gregos e ao empirismo de Galeno, assim como, e principalmente, a maneira como tentou vencer as dificuldades insuperáveis da construção de uma teoria da Ciência sem sair da empiria do mundo das sensações.

A par do dogmatismo na teoria do saber, que era a doutrina em voga nas escolas, alguns espíritos esclarecidos e até singulares prestavam audiência e corno que remoçavam as velhas e tenazes conceções da astrologia judiciária e do conhecimento divinatório e antecipado. Assim, como exemplos mais significativos dentre os numerosíssimos que podem coligir-se, Jerónimo Cardano, de tão destacado lugar na história da Álgebra e cujo talento Sanches admirou, deu largo crédito a todas as formas do ocultismo; e Jean Bodin, o insigne tratadista da filosofia política, tomou a sério o sortilégio dos bruxedos na Démonomanie des sorciers, publicada no mesmo ano do Quod nihil scitur. O obscurantismo não é explicação satisfatória da voga e crédito de tais conceções em mentes tão altas e esclarecidas. A razão profunda da aceitação procede da interpretação da causalidade em sentido mágico--astrológico, tal como a repulsa e descrédito ulteriores procedem da substituição desta interpretação pela que o génio de Galileu soube tornar mais coerente, consistente e fecunda. Sob certo ponto de vista, a astrologia é uma das raízes da Ciência moderna, enquanto concebeu a Natureza como sistema de acontecimentos não-casuais; mas sob outro é anticientífica, enquanto estabelece correspondência entre acontecimentos que não têm entre si relação. Separar o real do fantástico, e mais precisamente mostrar a falta de correspondência entre os fenómenos celestes e os acontecimentos sociais e entre o organismo humano e as pretensas forças ocultas, tornou-se então exigência da consciência reflexiva. Para Sanches, que se propusera remover do horizonte científico as abstrações que velavam e desfiguravam a «notícia» direta dos sentidos, a refutação destas conceções era mandato intelectual, mas é óbvio que a sua refutação tinha de ser coerente com a estrutura do saber que lhe nutria o espírito e com a epistemologia sensista que subjazia ao Quod nihil scitur. Tinham de ser este saber e esta epistemologia e não outros, ou sejam o tipo de conhecimentos e o sistema de ideias de que saíram a Revolução dos orbes de Copérnico, o Saggiatore e o Diálogo dos máximos sistemas, de Galileu. Daqui, o conceito sanchesiano da Natureza não coincidir com a conceção físico-matemática de Galileu e somente se deixar apreender quando se considera à luz das exigências epocais.


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