III - Discurso proferido na sessão plenária da Academia das Ciências de Lisboa, no dia 13 de Dezembro de 1951

Os seres animados não se furtam à alternância e vicissitudes desta lei geral, a qual mostra que Deus e a Natureza nada produzem em vão, mas tem caracteres que lhes são próprios. Sanches teve por sem dúvida que a vida dos seres humanos resulta da união da alma e do corpo, de tal sorte que os fenómenos que neles se passam têm início num ou noutro dos elementos do composto. Daí, a conexão íntima da alma e do corpo, cujas vicissitudes explicam as paixões e a própria duração da existência.

Bastam estas sumárias referências para mostrar que Sanches configurou a Natureza física como sistema de gerações e corrupções contínuas, no seio de uma só matéria, a que chamava o húmido, e de uma só força, a que chamava o calor. Em si, é uma conceção que resolve o processo cósmico no dinamismo de dois princípios; e na correlação histórica, é uma teoria cujo sentido se apreende pela comparação com as teorias coetâneas da iatroquímica de Paracelso, do animismo de Cardano e do hilozoísmo de Telesio, que Sanches certamente conheceu, embora somente cite, e com louvor, o autor do De Subtilitate e do De rerum varietate.

Todas estas conceções e teorias estão há muito sepultadas e nada dizem ao nosso saber atual, mas a nossa consciência científica atual não se avalia a si mesma com plenitude sem o conhecimento do que a condicionou e, de certo modo, preparou. «Sem Frínico, Timóteo não teria existido», posso tornar a dizer à maneira de Aristóteles, porque na conceção sanchesiana, embora menos expressiva e vibrantemente que na de Bernardino Telesio, pulsa a ideia de que os segredos da Natureza somente serão esclarecidos por princípios ativos inerentes à própria Natureza. Por outras palavras, anuncia a alvorada da conceção de lei natural e da função prática da Ciência, cuja condição prévia e relativamente próxima radica neste esforço filosófico-científico que libertou o estudo da Natureza da ação de potências ocultas e maravilhosas para o orientar no sentido das forças estritamente naturais.

Disse Malebranche que «para ser filósofo peripatético somente é necessário acreditar e conservar». Estas palavras do penetrante metafísico, que parece ter visado diretamente o Quod nihil scitur em certo passo do De la recherche de la vérité, não se aplicam a Francisco Sanches, que fez da interrogação dubitativa, do Quid que tantas vezes se lhe soltou da pena, ágil e incoercível, a seiva nutriente do pensamento. Teoricamente, Sanches foi a antítese do pensamento crédulo, embora socialmente e na ordem dos valores da conduta tenha sido conservador, como tudo indica, a começar no facto, bem significativo, de haver utilizado os tropos de Enesidemo com exceção do décimo, baseado na diversidade dos costumes e das opiniões, tão do agrado de Montaigne e dos «libertinos», designadamente La Mothe le Vayer. Sentiu e compreendeu com clarividência que já se não podia ser sábio nem filósofo com o saber da tradição aristotélica e que a teoria da Ciência carecia de ser fundada em bases radicalmente firmes. Perdida a confiança com que no início do século os melhores espíritos se voltaram para a Antiguidade na esperança de uma renascença que fosse ao mesmo tempo uma recuperação, Sanches viu que o problema primacial do seu tempo consistia na fundação radical dos conhecimentos científicos, cujo desenvolvimento dependeria da firmeza das bases e do methodus sciendi, que é o título de um dos livros que se propôs escrever e não sabemos se levou a cabo. Daí, o haver concebido a reflexão filosófica como instauração e não como restauração, mas como todos os que aspiram a ser grandes construtores começou por ser grande demolidor. Da edificação pouco nos legou, tão pouco que mal se descobre a traça do que planeara; porém da demolição, ouvem-se ainda, e provavelmente jamais se extinguirão completamente, os ecos vibrantes da picareta com que ajudou a derrubar a construção escolástica da teoria do Saber. Porque tão grande diferença entre a escassez dos materiais de construção e a abundância de tantos destroços da demolição? A resposta não é fácil, nem é provável que o venha a ser; creio, no entanto, que Sanches não construiu a teoria da «Ciência firme » que prometeu por dois motivos: primeiramente, por ser impossível fundar o conhecimento científico somente na empiria do mundo das sensações, ou por outras palavras, na conceção subjacente ao Quod nihil scitur de que a sensação é veraz e que o erro somente se dá no juízo a propósito da sensação, quando a ultrapassa e interpreta; e em segundo lugar, por não ter vinculado, assim na teoria como na prática, a observação dos factos à respetiva demonstração, satisfazendo-se com a simples mostração dos dados experimentados. Por isso, o pensamento de Sanches, historicamente considerado, assinala principalmente a crise da teoria da Ciência tradicional. O radicalismo do Quod nihil scitur é o testemunho vivo do divórcio existente ao tempo entre os novos conhecimentos obtidos por observação direta da Natureza e por via indutiva e a conceção dialética e dedutiva do Saber ensinado nas escolas. As viragens decisivas no curso do pensamento são, porém, as que orientam a Filosofia com sentido radical e ab ovo, e não as que somente refutam e contestam. Sanches teve a intuição da instância do seu tempo, mas porque não pensou a conexão da reflexão filosófica e do saber científico com o vigor e com a decisão que aplicou à refutação do verbalismo dialético e à lógica disputante, o seu pensamento ficou aquém do dos génios admiráveis que no século XVII instituíram a Ciência e a Filosofia modernas. Sem o radicalismo crítico de Sanches não se compreende o surto do pensamento moderno, mas o pensamento moderno, enquanto pensamento construtivo, não se explica com o radicalismo de Sanches.

Quando deu a público, em 1581, o Quod nihil scitur, haviam decorrido três anos sobre o aparecimento em Roma do tomo I dos comentários de Pedro da Fonseca In libros Metaphysicorum Aristotelis. Nestas obras, das mais profundas que a consciência reflexiva de portugueses tem cogitado, opunham-se duas conceções da Filosofia e dois ideais da Ciência: uma, a do Aristóteles Conimbricense, significava a restauração do pensamento dogmático e da metafísica do ser; outra, a do «cético» de Toulouse, a apoteose do pensamento antidogmático e a redução da Filosofia ao plano da Ciência. Duas atitudes que sempre se digladiarão e cujos antagonismos e vicissitudes enchem em grande parte a história do pensamento filosófico. Um, deu certezas metafísicas, sem as quais o Universo se não torna harmoniosamente inteligível; outro, dúvidas incitantes, sem as quais não há heroísmo da inteligência nem progresso do Saber. Não é esta a hora de optar por uma destas atitudes nem a de tentar qualquer outra que as compreenda e supere; é somente a oportunidade de rememorizar o ensinamento supremo de Sanches, o qual consiste em nos advertir que a consciência reflexiva não vale como contemplação de essências inteligíveis nem como jogo subtil de conceitos, mas como disciplina de observação e de integração do que se observa.

Por isso, Francisco Sanches é um dos mestres sempre vivos que ensinam a lição antiga, sempre esquecida e sempre custosa de aprender, de que as verdades são esquivas e nunca se encontram nos rodeios que limitam o horizonte da observação e da reflexão crítica com a falácia de palavras ou com o esconjuro de teorizações de uma verdade simplificada e soberana.

A Universidade de Toulouse, associada à comissão organizadora das Journées Médicales Toulousaines, a Municipalidade de Braga, com a colaboração da Faculdade Pontifícia de Filosofia, da mesma cidade, e a Academia das Ciências de Lisboa, levaram a cabo solenidades e sessões comemorativas do quarto centenário do nascimento do filósofo e médico Francisco Sanches, nas quais colaboramos com os discursos aqui transcritos.


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