Hegel e o conceito de história da filosofia

As reflexões de Hegel (1770-1831) sobre o conceito e objeto da História da Filosofia não têm similar na profundeza e assinalam a viragem decisiva de novas direções e de nova metodologia. Tudo o que as precede pertence, por assim dizer, à proto-história do assunto, porque foi a partir das páginas hegelianas, nas quais os problemas da História da Filosofia foram vistos pela primeira vez como problemas filosóficos, e mormente pela influência que exerceram na construção da gigantesca Filosofia dos Gregos no seu Desenvolvimento Histórico (I, 1844-1852) de Eduard Zeller, que a História da Filosofia se constituiu corno disciplina própria e científica, para empregar a expressão afortunada, mas discutível de Kuno Fisher, o grande historiador da Filosofia Moderna.

Objeto do primeiro curso que o genial filósofo fez na Universidade de Heidelberga no ano letivo de 1816-1817, com o qual se estreou como professor universitário e cuja redação concluiu em Berlim, estas reflexões vieram a público como Introdução às Lições de História da Filosofia que ele proferiu em locais e anos diferentes e Karl Ludwig Michelet (1801-1893) preparou para o prelo, utilizando manuscritos do Mestre e apontamentos dos seus discípulos de Berlim.

Pelas ideias em que assentam estão em conexão íntima com os fundamentos do sistema hegeliano e pela vibração emotiva que as percorre proclamam admiravelmente a fé ardente e comunicativa de Hegel no valor e no destino da Filosofia. Pensadas contemporaneamente aos movimentos de libertação e de restauração da nação alemã, alentadas pela convicção profunda, afetiva e conceptual, de que a nacionalidade é o «fundamento de toda a vida viva», estas reflexões como que traduzem no plano intelectual o esforço recuperador e criador que o povo germânico empregara na afirmação da sua existência própria.

A energia aplicada à luta física e material, pensava Hegel, devia agora aplicar-se ao pensamento científico e especulativo, e porque a Alemanha tinha por missão manter o facho da Filosofia como outrora em Atenas os Eumólpidas tiveram a de conservar os mistérios de Eleusis, à juventude alemã cumpria «a coragem da verdade», tanto mais que «a fé no poder do espírito é a condição primordial da Filosofia» e «a essência do Universo, a princípio oculta e cerrada, não dispõe de força capaz de resistir à tentativa de quem pretende conhecê-la, acabando sempre por se desvendar e patentear a própria riqueza e profundidade para que o homem dela disfrute».

Destarte, as reflexões de Hegel suscitam três ordens de consideração acerca do objeto da História da Filosofia, respeitantes à situação anterior a Hegel, à estrutura da própria conceção hegeliana e à respetiva influência e revisão crítica.

A História da Filosofia é de constituição recente; a sua proto-história prolonga-se até ao século XVIII e a sua história afirma-se e expande-se principalmente a partir da segunda metade do século XIX.

O aparecimento tardio tem fundamento no facto do objeto da História da Filosofia não ser imediatamente dado, como os seres e os aconteceres da Natureza, mas, ideado, como é próprio das funções e dos produtos da Cultura; e o desenvolvimento extraordinário, por vezes assombroso, que alcançou meado o século último, está em íntima correlação com o incremento e profundeza atingidos pelos estudos históricos e pela respetiva teorização e metodologia.

Não era possível constituir-se a História da Filosofia sem alguns pressupostos e requisitos, e uns e outros somente no século XIX tiveram condições culturais de existência. Entre os primeiros, avultam a conceção da relatividade epocal, isto é, a da existência temporal dos acontecimentos com fisionomia peculiar, e as ideias de desenvolvimento e de evolução, e estas conceções e ideias somente se tornaram culturalmente coerentes e sugestivas no século XIX. Até então, o que a indagação pode arrancar à mudez dos documentos tem, mais ou menos acentuadamente, o vinco a-histórico, como sequência inevitável do sentimento de posse de verdades eternas, de natureza religiosa, como na Idade Média, ou de estrutura racional, como nos séculos XVII e XVIII.

Além dos pressupostos, eram ainda necessárias outras condições relativas aos próprios dados históricos e à maneira de os apreender e determinar. O requisito mínimo da historiação que pretende ser filosófica é a existência de textos sobre que ela assente e discorra. É a condição primária e imprescindível, mas como produtos culturais que são, os textos admitem a possibilidade de comportamentos mentais diversos em relação ao que neles é ou deve ser tido por filosófico. A comparação, por exemplo, das duas mais famosas histórias filosóficas anteriores a Hegel, ou sejam a Historia critica philosophiae a mundi incunabulis ad nostram usque aetatem (Lípsia, 1741-1744), de Brucker, e a Histoire comparée des systèmes de philosophie, relativemení aux principes des connaissances humaines (Paris, 1804 e 1823) de Degerando, com os monumentos que Zeller e Kuno Fisher ergueram relativamente à evolução do pensamento na Grécia e à filosofia europeia nos tempos modernos, mostra bem a disparidade de critérios e o que de diversamente filosófico se foi procurar nos textos dos «filósofos», que aliás não são os mesmos, nem de idêntico valor, para uns e para outros. Se do geral passarmos para o particular da peculiaridade das mensagens filosóficas e das notas características de certas conceções, como por exemplo, a significação histórico-filosófica de Sócrates, de Aristóteles, de Descartes, de Leibniz, ou o sentido próprio de algumas teorizações, como a teoria platónica das ideias e a conceção aristotélica do intelecto, a diversidade aumenta, tornando-se cada vez mais amplas, complexas e subtis pela crescente largueza de vistas, pelo deslinde de novas fontes e conexões e pela maior penetração da agudeza intelectual.

A historicidade apresenta-se, pois, como condição categorial do pensamento historiográfico, e foi à luz deste descobrimento fundamental que pôde ver-se com nitidez a existência de épocas cegas para o objeto próprio da indagação histórico-filosófica, cuja cegueira aliás ainda afeta contemporâneos nossos que creem historiar filosoficamente quando acarretam materiais biográficos e bibliográficos, imprescindíveis, sem dúvida, mas cujo lugar é, por assim dizer, vestibular. Essas épocas que acima designamos de proto-história da História da Filosofia, caracterizam-se, pois, pela inapreensão do objeto histórico-filosófico, assentam no pressuposto a-histórico da existência de verdades filosóficas atópicas e acrónicas, e exprimem a atitude historizante, isto é, o apelo ou a compreensão do passado, pelo comentário glosante de um texto ou pelo registo das variações das opiniões, e em particular dos erros e deturpações da verdade.

A atitude filosófica implícita no comentário glosante pressupõe a existência de um texto considerado como expressão definitiva de pensamentos verdadeiros. Na essência, é uma atitude a-histórica, não só porque desatende à temporalidade e às circunstâncias em que os pensamentos necessariamente se dão, mas principalmente porque os considera como expressão de uma doutrina que se pretende tornar presente, com plena atualidade. Daí, o comentador tomar perante o conjunto de pensamentos que temporalmente se deram acerca do mesmo objeto uma posição seletiva e preferencial, visto reconhecer a legitimidade de um só apenas, com exclusão de todos os outros. Consequentemente, é uma posição não só a-histórica, mas até anti-histórica, na medida em que sacrifica a temporalidade, a objetividade e a neutralidade ao exclusivismo unitário de um pensamento ou sistema de pensamentos.


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