Em ambiente mental assim estruturado, a História da Filosofia não podia gerar-se nem constituir-se. É o que se vê durante a Idade Média, em relação às coletâneas de sentenças e placita philosophorum e ao reconto histórico, que, de modo geral, se espraia no acidental, confunde no mesmo plano o real e o fabuloso sob um fundo de transcendência, e muito principalmente nos comentadores de Aristóteles, designadamente Averróis, cuja estrutura se encontra ainda nos Comentários dos Conimbricenses, visto o estabelecimento, tradução e explicação de Aristóteles obedecer à intenção sistemática e não propriamente histórica. No comentário assim entendido não há separação entre a glosa literal e a glosa doutrinal, porque, como notou Émile Bréhier, o texto é considerado como depósito «de verdades adquiridas que nele cumpre encontrar sem olhar ao custo» e a glosa, «como que o rejuvenescimento perpétuo do passado».
As raízes do conceito de História da Filosofia nasceram da substituição do comentário glosante pela indagação das opiniões produzidas no e pelo espírito humano a mundi incunabilis, no dizer significativo do título da Historia critica Philosophiae (1741-1744), de Brucker.
Como escreveu Formey, bem expressivamente, «a filosofia moderna a partir da [Renascença] pode dividir-se em sectária e eclética», isto é, para empregar palavras mais pertinentes ao nosso tema, podem distinguir-se duas conceções diversas da historiografia filosófica: uma, diretamente relacionada com o racionalismo, projeta no universalismo das ideias claras e distintas a incompreensão temporal do comentário glosante, outra, relacionada com os primeiros tentames de compreensão, deu ensejo à génese, que não propriamente à gestação, do conceito da historicidade do pensamento filosófico, aliás associado ao de progresso do espírito humano e de que ficou paradigma o Tableau des progrès de Condorcet.
O racionalismo de setecentos desentranhou logicamente uma conceção da história filosófica como história das seitas, dos erros e dos delírios do espírito humano, visto a verdade, una, absoluta, intemporal, estar fora de circunstancialidades temporais e, portanto, sem dimensão histórica. Se a verdade é una, pensava-se, somente pode haver uma única filosofia verdadeira, em relação à qual as demais filosofias que dela se afastem não passam de combinações mais ou menos engenhosas de erros. Esta é uma maneira de pensar facilmente acessível e sempre renascente, mas cuja inconsistência Hegel jocosamente pôs a nu quando a comparava «a um doente a quem o médico tivesse aconselhado a comer fruta e que tivesse diante de si cerejas, ameixas, uvas, mas que por pedantismo se recusasse a tomá-las, pela simples razão de que nada do que lhe tinham oferecido era fruta, senão cerejas, ameixas e uvas».
Pombal, o «déspota ilustrado», cuja conceção absolutista não tolerava diferenças de opinião e somente concedia aos súbditos «o recurso do sofrimento» contra as decisões do Poder, consignou coerentemente esta conceção nos Estatutos da Universidade de Coimbra (1772), ao determinar que o lente de Filosofia Racional e Moral devia ensinar nos Prolegómenos Gerais da Filosofia a «origem e progressos dela; as diferentes seitas em que se dividiu; os esforços e os delírios dos Filósofos mais célebres na República das Letras pelos seus descobrimentos e pelos seus erros» (1. III, p. III, t. III, c. I). A História da Filosofia, assim entendida, equivalia ao relato histórico das «seitas», para empregar a expressão que já ocorre no vocabulário de Louis Vives e Horn popularizou no século XVII, e expressivamente designa a atitude que parte da existência intemporal de dada filosofia como verdadeira, em relação à qual as outras manifestações do pensamento filosófico são tidas por sectárias, erróneas ou delirantes.
O desenvolvimento desta conceção conduziu naturalmente à conceção eclética da História da Filosofia, isto é, à narração da diversidade morfológica do pensamento abstrato e dos respetivos ideatos. Por diversas e antagónicas que sejam as manifestações do pensamento filosófico, todas têm de comum o produzirem-se no espírito humano, o que mostra que a razão pode tomar posições diferentes em relação ao mesmo objeto sem comprometer irremediavelmente a racionalidade do pomo sapiens. Daí, a atitude metodológica neutral, orientada no sentido da indagação da morfologia das manifestações do pensamento filosófico em toda a parte e em todos os tempos, ab orde condito, dizia Horn, a mundi incunabulis, escrevia Brucker.
Destarte se originou a conceção acima designada de eclética, palavra tão afortunada no vocabulário histórico-filosófico da segunda metade do século XVIII como o de filosofia sectária o havia sido na primeira metade do mesmo século. O passado histórico-filosófico deixa de ser apresentado valorativamente, como teatro da luta de uma verdade absoluta com a multiplicidade dos erros, e em vez desta conceção anti-histórica, surgem os lineamentos da conceção histórica, larga, neutral, tolerante, de que Deslandes deu exemplo ao definir a História da Filosofia «como a própria história do espírito humano, ou pelo menos como a história do assunto em que o espírito humano alcançou os mais elevados pontos de vista».
Do ecletismo assim entendido foi entre nós claro representante Verney, tanto na História da Filosofia como na Filosofia Geral. Dos fundamentos em que assentava poderia ter saído a História da Filosofia como História da formação e desenvolvimento das conceções gerais acerca do Mundo e da Vida, mas o estilo mental do século, que podemos apreender nas produções da Academia Real da História Portuguesa, especialmente na Biblioteca Lusitana de Barbosa Machado, conduziu ao predomínio da erudição, isto é, à indagação de materiais subsidiários, e à consideração das conceções filosóficas como opiniões de individualidades singulares pelo talento.
Daqui, a acumulação de materiais e a indagação de fontes inexploradas, que tornaram os trabalhos assim orientados subsídios prestantes, notadamente a Historia critica Philosophiae, de Brucker, tão útil para a História da Filosofia como a Biblioteca Lusitana, de Barbosa Machado, o é para a História da Literatura. A reconstituição propriamente histórico-filosófica não esteve, porém, a par do esforço erudito. Foi superficial e desconexa; no entanto, abriu passo ao advento da atitude metodológica em que a erudição e a crítica das fontes, o sentido da temporalidade das conceções e a penetração dos dotes filosóficos, isto é, a destreza no deslinde e conexão das abstrações, produziram, no primeiro quartel do século XIX a fundação da História da Filosofia, a qual, como acabamos de mostrar, é um produto tardio e avançado da Cultura.
Hegel, metafísico genial, cuja filosofia desentranhou novas interpretações do mundo humano, foi o instaurador do conceito moderno de História da Filosofia. Esclareceu-o, sem dúvida, à luz da sua própria filosofia, mas esta limitação, ou, se se quiser, deformação, não impediu que formulasse os problemas fundamentais, indo ao cerne de cada um deles, e estabelecesse diretrizes que estão na base da historiografia filosófica contemporânea.