Hegel e o conceito de história da filosofia

No pensamento hegeliano, História de Filosofia e Filosofia da História compenetram-se mutuamente e são explicitação do objetivo que visa a compreender a realidade presente mediante a realidade transata. Os acontecimentos históricos, vividos ou pensados, somente adquirem sentido e explicação quando considerados à luz da ideia para que tendem e de que são explicitação, — tal é a conceção fundamental que importa ter presente e que Hegel expôs nas lições de Heidelberga, no ano letivo de 1816-1817, acerca da História da Filosofia e da Filosofia sistemática e cuja estrutura se encontra na Enciclopédia das Ciências Filosóficas (1.a ed., 1817, Heidelberga) e na lição inaugural da Introdução à História da Filosofia. Na história de um povo, pensava, os acontecimentos e os indivíduos não interessam o historiador-filosófico senão enquanto explicitam o desenvolvimento político desse povo, porque «o que sucede a um povo e tem lugar dentro dele tem o seu significado essencial em relação com o Estado» (Enciclopédia, § 549). Assim, por exemplo, na história de Roma, o que importa é o destino ou a decadência da grandeza do Império Romano, sendo este fim o fundamento dos próprios acontecimentos e a razão da importância do juízo que sobre eles se façam. «Uma história, escreve, sem o dito fim e sem tal juízo seria apenas um abandonar-se idiota à mera imaginação, e nem sequer seria um conto de crianças, pois que as crianças também exigem que as narrações tenham interesse, isto é, um fim que, pelo menos, lhes deixe entrever a relação dos acontecimentos e das ações com esse fim» (Id., ibid.).

 

Por isso, se o historiador político não pode postergar a ideia de Estado, como o juiz não pode postergar a ideia de Justiça, o historiador-filosófico também não pode postergar as ideias de Estado, de Razão e de Liberdade, que são as ideias para que tende o ser profundo da História e que ao mesmo tempo o explicitam.

A História da Filosofia é a expressão refletida desta conceção. O pensamento não é dado nem se dá imediatamente e de uma só vez, ou por outras palavras mais adequadas, não é mas devém, sendo justamente pela consciência das várias formas, fases e períodos por que passa e se manifesta a sua desenvolução que ele se apreende, conhece e toma consciência mais plena e perfeita de si.

Assim considerado, o pensamento filosófico não é de maneira alguma independente e exterior à marcha da História, mas as suas manifestações, que se apresentam diversas e até antagónicas no decurso das gerações, propõem o problema da respetiva racionalidade, isto é, o problema de saber em que medida as diversas e antagónicas filosofias são racionalmente pensáveis e coerentes no seu advento histórico. Daí, o problema primário e basilar da História da Filosofia, ou seja o do objeto que lhe é próprio, pois é em função deste que se hão-de investigar, relacionar e explicar as manifestações do pensamento filosófico.

Este é um problema que, em geral, os historiadores das diversas ciências particulares não têm que considerar, porque o objeto de cada ciência está mais ou menos particularizado e os progressos dos conhecimentos acerca dele se constituem normalmente por adição sucessiva das contribuições dos diferentes sábios. Para o historiador da Filosofia, pelo contrário, o objeto que ele se propõe historiar constitui um problema urgente e prévio, não só para se orientar como, sobretudo, para afastar do horizonte histórico-filosófico os conceitos que impedem a visão clara e a marcha segura.

A primeira dificuldade que lhe cumpre dissipar é o desconcerto que à primeira vista resulta do espetáculo da sucessão das conceções filosóficas. Todas dizem propor-se e dar a explicação racional da realidade, mas cada uma arvora a própria conceção como a verdadeira Filosofia, por antagónica e polarmente oposta que seja às outras. Daí haver quem seja levado a crer que as diversas manifestações do pensamento filosófico ao longo do tempo não vão além de uma galeria de opiniões dos «heróis da razão», sem conexão de umas com as outras e cujos pensamentos morreram com o passado que os sepultou, perdendo todo e qualquer interesse para o presente. A primeira tarefa do historiador da Filosofia consiste em remover este ponto de vista, que priva a História da Filosofia de objeto consistente e racionalmente pensável. Para se tornar disciplina coerente, a História da Filosofia carece de um objeto que esteja acima e fora da poeirada dispersiva das opiniões de cada um, e esse objeto somente pode encontrar-se na própria ideia da Filosofia. Só ela pode tornar sinfonia a multidão de rapsódias esparsas, distantes e díspares.

Indo à razão de ser de todas as manifestações pretéritas do pensamento filosófico, Hegel pensou que elas não vieram à existência sem causa, e sendo assim não se trata de opiniões contingentes e conjeturais mas de ideias que devem ter entre si conexão racional. O que somos, somo-lo pela História, é tópico da filosofia hegeliana, e consequentemente a razão atual, instruída e consciente dos contrastes das diversas doutrinas e ida respetiva superação por conceções mais compreensivas e extensivas, não se produziu nem se constituiu instantaneamente, de uma só vez. Produziu-se ao longo do tempo e desenvolveu-se com a perceção da multiplicidade das suas formas e incidências, à maneira de um rio que se vai tornando mais caudaloso à medida que se afasta da nascente e vai recebendo maior volume de afluentes diversos. Assim considerado, o desenvolvimento do pensamento filosófico não deve ser visto limitadamente, em relação somente a dado país ou região, mas universalmente, isto é, em relação à totalidade ido mundo humano. Uma nação pode estacionar, como parece ter acontecido na China, mas o espírito universal não para nem estaciona, porque o seu viver é o seu agir. Por isso, o espírito universal, em cada época, por um lado recebe e assimila a herança científica e filosófica das gerações passadas, e por outro, desenvolve-a acrescentando-lhe algo que lhe faltava. Donde, a produção intelectual ter por característica a presencialidade de um mundo cultural pré-existente, cuja instância é assimilada, acrescentada ou modificada no ato em que o espírito dela se apossa.

Daqui, estabelece Hegel duas ilações relativamente ao ponto que nos ocupa: a História da Filosofia é a iniciação necessária no conhecimento da própria Filosofia e tem por objeto as manifestações do pensamento que a si próprio se encontra e reconhece e mediante este ato se descobre e se produz, pelo que a História da Filosofia se converte em ciência da Filosofia.

A historicidade do pensamento é, pois, o primeiro resultado da inquirição de Hegel sobre o objeto da História da Filosofia, mas ao mesmo tempo que o estabelece logo confina o que se apresenta como processo vivo e criação permanente, por subentender que a marcha do pensamento filosófico culminava e se rematava na própria filosofia hegeliana, que assim passava a ser a meta final do processo histórico do pensamento humano Revertamos, porém, à continuidade das reflexões de Hegel, que, depois de estabelecerem de modo geral o objeto da História da Filosofia, sujeitam o respetivo conceito ao exame da possibilidade lógica e ao da sua extensão, relação, significado e destino.


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