Hegel e o conceito de história da filosofia

Se a história é o teatro do que nasce, muda e fenece, e se o pensamento verdadeiro é em si e por si estante e eterno, e portanto imutável, como é possível que o mundo do pensamento seja histórico? Se a verdade é essente e sempre a mesma, não será intrinsecamente contraditório o conceito de História da Filosofia?

Para o racionalismo cartesiano, cativo da necessidade, imutabilidade e eternidade da Verdade, a Filosofia não tinha história, não se tendo esquecido Descartes de deixar acentuado no sumário do Discurso do Método que as suas reflexões começavam ah ovo e sem precedentes positivos. Foi necessário o surto genial do idealismo alemão para que acontecesse o descobrimento da historicidade da Filosofia, sendo precisamente um dos rasgos geniais de Hegel o ter mostrado a constituição histórica do pensamento.

Grande e complexo tema, na historicidade do pensamento, segundo Hegel, importa principalmente dissipar a contradição que a História da Filosofia parece conter intrinsecamente, ou seja a contradição entre o conceito de História, como sucessão e diversidade de pensamentos, e o de Filosofia, como expressão da imutabilidade e eternidade da verdade.

Em primeiro lugar, o conceito de Filosofia comporta coerentemente uma história externa, entendendo por tal a narração do que respeita, por um lado, à origem, difusão e consecução do seu ponto culminante, decadência e renascença, e por outro, à vida e circunstâncias dos seus fautores e adversários e ainda às relações com a Religião e com o Estado. Com ser externa, isto é, não se situar na própria essência da Filosofia, a historiografia destes diferentes aspetos da atividade filosófica propõe alguns problemas que transcendem a mera narração, designadamente a razão pela qual a Filosofia aparece limitada a certos povos, e nestes a certos indivíduos, e se dá em certos períodos particulares de tempo e não noutros.

Estes problemas tornam flutuante a fronteira da História com a Filosofia, mas onde a flutuação dá lugar ao contraste, aparentemente, é no que toca ao objeto, em virtude da Filosofia não apresentar na sua marcha a persistência de um conteúdo completo, nem tão-pouco, como as diversas ciências, o processo de adição de novos conhecimentos em relação ao mesmo objeto. Daqui, a existência de mal-entendidos e de prevenções contra a História da Filosofia.

O comum vê nela um amontoado de opiniões fantasistas, sem notar que a história de opiniões é uma história inútil. Quem assim julga, ou ignora o que seja Filosofia, o que, aliás, o não impede ide se pronunciar sobre ela, ou procede como os curiosos e eruditos. A Filosofia, como tal, não é nunca opinião, por ser «a ciência objetiva da verdade»; e filosofar «é conhecer mediante conceitos, não é opinar nem deduzir uma opinião de outra». Por isso, a conceção da História ida Filosofia como história de opiniões não é própria de filósofos mas de adversários da Filosofia, que ou pretendem que a fé subjugue a razão ou são céticos, negando a existência ide qualquer espécie de verdades.

E certo que, no decurso da História, as várias filosofias se negam mutuamente, sem se verificar o triunfo definitivo de qualquer delas, mas também este facto não significa que a História da Filosofia seja o cemitério da individualidade dos filósofos e da mensagem dos sistemas filosóficos. Por diversas e antagónicas que sejam, todas as filosofias como tal são expressão de conceitos e não de opiniões, por forma que o respetivo estudo, na multiplicidade das suas manifestações, conduz à ideia de que a filosofia verdadeira é o sistema das filosofias particulares e que mediante a mútua oposição comunicam entre si e convergem para a verdade.

Consequentemente, há que indagar a razão da multiplicidade e da diversidade de formas com que a Filosofia se manifesta ao longo do tempo. Descobri-la equivale a estabelecer o objeto da História da Filosofia, mas neste descobrimento Hegel não procedeu como historiador, mas como filósofo sistemático, aliás coerentemente consigo próprio, por ter por certo que a Filosofia é sistema em desenvolução temporal.

Coerentemente com o seu sistema (e não com a História), Hegel, com efeito, pensou que o objetivo de todas as filosofias é o Ser. É o denominador comum de todas elas, e se cada uma dá uma resposta diferente é porque o Ser não é unidade indeterminada, mas, pelo contrário, possui múltiplas determinações. Se se atentar na noção de desenvolvimento notar-se-á que ela comporta dois estados do ser, — o ser-em-si, ou em potência, que é o ser abstrato e indeterminado, e o ser-por-si, em ato ou real, que é o ser concretizado. O desenvolvimento, propriamente, é a passagem do ser potencial ao ser atual, ou por outras palavras, a explicitação do seu conteúdo pela concretização de determinações inerentes ao ser-em-si. Assim, à maneira de exemplo, as diversas partes da planta são a concretização do que a semente contém potencialmente, sem que a planta deixe de ser planta pela formação de cada uma das suas partes constituintes, porque todas e cada uma estão subordinadas ao conjunto; e assim, ainda, o homem é racional desde o instante da conceção, «mas somente no ato em que o homem devém por si aquilo que é em si — e isto é a razão por si é que o homem tem atualidade naquele determinado aspeto e é racional, quer dizer, chega efetivamente à razão por si». A inteligência abstrata dissocia e isola elementos e fases no desenvolvimento concreto do ser; por isso, uns sustentam que a matéria é contínua e outros que ela é descontínua, que o espírito é livre enquanto outros sustentam o contrário, sem que uns e outros notem que o ser-em-si é simultaneamente contínuo e descontínuo, livre e determinado, porque na sua essência se dão a unidade das diferenças e a coincidência dos opostos.

Foi à luz desta conceção que Hegel considerou o objeto da História da Filosofia; consequentemente, a diversidade dos sistemas filosóficos é a desenvolução necessária do próprio conceito de Filosofia, porque embora separadamente cada um seja a explicitação de um momento ou de uma determinação limitada, considerados na totalidade todos se aplicam à indagação de uma só e mesma realidade, que é o Ser.

Assim, a Filosofia e a História da Filosofia são intimamente conexas, porque se a Filosofia é o conhecimento do sistema (ou da Ideia) que evolve, a História da Filosofia é o conhecimento do sistema (ou da Ideia) já evolvido. Na Filosofia enquanto Filosofia, isto é, enquanto sistema, os momentos da Ideia são estabelecidos dialeticamente; na História da Filosofia, os momentos da Ideia são apreendidos temporalmente, isto é, nas sucessivas e diversas determinações da Ideia no decurso do seu desenvolvimento, mas a desenvolução da Ideia é uma e a mesma na dialética e na história.

 

Tal é, em síntese elementar, o conceito hegeliano da História da Filosofia, cujo início o filósofo da Fenomenologia do Espírito (1807) radicou na Grécia, isto é, contemporaneamente ao nascimento do pensamento livre ou seja o pensamento liberto do enleio das fantasmagorias e das intuições meramente sensíveis. Duas notas sobressaem na esfera de propriedades deste conceito: a temporalidade da mensagem própria de cada filosofia e a conexão das diversas filosofias, por antagónicas que pareçam, mediante a desenvolução inerente à Ideia de Filosofia. A primeira, situa o historiador-filosófico no hic et nane peculiares de cada filosofia, e portanto condu-lo a reconstituir e a pensar sob a categoria do passado a génese e a conceituação de cada filosofia; a segunda, situa-o na universalidade do objeto da Filosofia, e portanto condu-lo a discorrer dialeticamente e a estabelecer a identidade do facto e da ideia e a conformidade da ordem lógica e da ordem cronológica. Com estarem relacionadas na mente de Hegel, estas duas conceptuações são separáveis e tiveram desenvolução relativamente independente, pois da primeira resultou uma verdadeira floração da historiografia filosófica, e da segunda uma das teses mais características do hodierno idealismo italiano, designadamente de Benedetto Croce, ou seja a identidade da História e da Filosofia, isto é, a história não é compreensível sem a filosofia e a filosofia sem a história, que é o terreno em que ela nasce e se dá.


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