Introdução à filosofia como ciência de rigor de Husserl

 

As Ideologias podem entrar em disputas, só a Ciência é que pode trazer decisões, e essas são eternas.

HUSSERL

O objetivo nuclear da inquirição de Edmund Husserl, aplicada “em decénios de meditação dirigida exclusivamente para esta meta”, consistiu, como ele próprio declarou, em “converter em realidade o começo radical de uma filosofia” que “possa apresentar-se corno ciência”, para repetir as palavras kantianas”.

O objetivo e o propósito significavam, dentre outras muitas coisas, a constituição de uma filosofia diversa das filosofias construídas «sob o ponto de vista de» ou derivadas dedutivamente de dado ponto de partida, por forma que a filosofia assim constituída viesse a ser a «mais rigorosa de todas as ciências, a representante imperecível da Humanidade para o conhecimento puro e absoluto» (hic., p. 2).

Na linha dos poucos filósofos verdadeiramente instauradores de novas bases e de novos rumos, Husserl sentiu, como nenhuma outra mente sua contemporânea, que esta era a tarefa urgente e necessária. Como ele próprio diz (hic., p. 13), a situação da Filosofia no princípio do nosso século faz lembrar a situação da «turva filosofia renascentista da Natureza perante a vigorosa Mecânica exata de um Galileu». Então, não faltaram, os construtores de sistemas da Natureza, como hoje não faltam na Filosofia os construtores de teorias e de conceções mais ou menos sistemáticas. O impulso que deu vida a tais sistemas da Natureza, hoje só lembrados pelos historiadores, estancou-se quando Galileu fundou as bases da Física, tornando possível a continuidade da investigação científica e os progressos da ciência moderna. Era obra idêntica no domínio da Filosofia que a juízo de Husserl se impunha, por forma que se removesse definitivamente o ceticismo e o relativismo, pela constituição de «um fundo de ciência filosófica» universal e absolutamente válido, sobre o qual viriam a estabelecer-se «futuros sistemas doutrinais de rigor científico». Olhos postos no desenvolvimento das ciências exatas, cujos conhecimentos acerca dos objetos de que se ocupam aumentam e se aprofundam por adições sucessivas, constituídas pelos resultados do trabalho de sábios diversos, Husserl pretendeu que o desenvolvimento futuro da Filosofia fosse também o de uma «ciência rigorosa», e em vez de tentar mais um «sistema», cujo destino seria «o silêncio do museu da História», procurou estabelecer “fundamentos seguros” a que viessem juntar-se futuros acrescentamentos seguros, «pedra por pedra» (hic., p. 4).

O intento implicava «uma viragem da Filosofia». O primeiro passo, instante e decisivo, consistia em firmar a filosofia sobre urna base absolutamente radical e última e em a dotar com o método apropriado e fecundo. Husserl assim o compreendeu, sendo sobre este objeto que, quase exclusivamente, consagrou a sua genial capacidade reflexiva e se relaciona quase tudo o que deu a público.

As páginas que constituem o presente volume assinalam um aspeto e um momento desta ingente meditação. Saíram a público em 1911 no torno I (pp. 289-341) da revista Logos (Tubinga) sob o título de Philosophie ais strertge Wissertschaft.

Não foram reeditadas no original nem traduzidas em qualquer língua, e quando Husserl as publicou era professor em Gotinga, donde transitou em 1916 para Friburgo ide Brisgóvia, onde faleceu em 27 de Abril de 1938, aos 79 anos, pois nascera na Morávia em 1859.

Destinadas a uma revista que pretendia «documentar uma viragem da Filosofia e preparar o terreno para o futuro sistema dela», e escritas dez anos depois da publicação das Investigações Lógicas e dois anos antes da publicação das Ideias para uma Fenomenologia Pura e uma Filosofia Fenomertológica, as páginas de A Filosofia como Ciência do Rigor não tiveram a divulgação destes dois monumentos, que para sempre assinalarão os dois primeiros decénios do nosso século, mas a conceção que expõem difundiu-se pela expressividade do título e pela irradiação de objeções críticas. A presente tradução é, pois, a primeira que destas páginas se faz em qualquer língua, e o facto merece atenção, principalmente por significar a introdução de um escrito que foi pensado em função da mais instante e árdua dificuldade que a filosofia tem de enfrentar e cujas páginas são lição viva de escrupulosidade, de profundidade e de originalidade de pensamento. Tanto ou mais do que as próprias ideias em si mesmas consideradas, importam o modo e o teor do pensar, e de um e de outro, Husserl, a par de Platão, de Aristóteles, de S. Tomás de Aquino, de Descartes, de Kant, é mestre na arte difícil de delimitar e de cingir o assunto em vista, de enfrentar a aridez e a dureza, que são as companheiras inseparáveis dos grandes descobrimentos da Razão, e de o esclarecer com exigências de rigor e de radicalidade.

Figura suprema da filosofia do nosso século, do magistério de Husserl escreveu um teólogo famoso que «a atmosfera de inaudita solidez que o seu ensino filosófico respirava, apoiado inteiramente sobre esforços que se sentia serem evidentemente pessoais e dolorosamente obstinados, arrancou-nos como que de um salto aos icebergues movediços das «opiniões pessoais», para nos transportar para o que o Mestre gostava de chamar a terra firme da Filosofia. O que nos impressionava acima de tudo era a substancialidade dos seus cursos», escreveu ainda o mesmo devotado discípulo, e estas qualidades passaram do magistério oral para a lição silenciosa dos livros que Husserl deu a público, tornados também modelos vivos e impressionantes de esforço pessoal, de clarividência no profundo e de substancialidade.

Se as lições do insigne Mestre e Pensador impressionam os discípulos, revelando-lhes a «terra firme da Filosofia», os livros que escreveu não deixam o leitor indiferente, obrigando-o a um esforço e mantendo-o numa tensão que somente esmorece com a concordância, com a divergência ou com o corte em sentido antagónico. Por isso, se compreende e justifica a influência renovadora que a sua conceção fenomenológica exerceu e continua exercendo na Alemanha, na França, na Itália e na América do Norte, sendo legítimo conjeturar que ela alcance no futuro mais vasta dimensão e perspetiva, quando se tornarem comodamente legíveis as «pelo menos, 30 mil páginas em 8.° de autógrafos, na quase totalidade escritas em estenografia (Gabelsberger Stenographie), com um número considerável de sinais próprios criados por Husserl. Sabe-se que, segundo especialistas nesta matéria, os inéditos de Husserl são muito mais importantes que a sua obra publicada, e que é somente nestes papéis que se encontra uma exposição completa das suas ideias filosóficas». Então, mais extensa e profundamente do que hoje, se poderá avaliar a assombrosa atividade de pioneiro que Huserl aplicou a terrenos inexplorados e o sentido profundo das seguintes palavras que ele escreveu no parágrafo final do epílogo das Ideias para uma Fenomenologia Pura e uma Filosofia Fenomenológica: «Se por um lado o Autor teve que rebaixar praticamente o ideal das suas aspirações filosóficas ao de um simples principiante, por outro lado chegou com a idade à plena certeza de se poder intitular um efetivo principiante. Quase poderia ter a esperança, se lhe fosse concedida a velhice de Matusalém, — de poder chegar a ser um filósofo».


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