Introdução à filosofia como ciência de rigor de Husserl

Porque assim procedem na sua constituição, isto é, considerando o ideal científico imanente à própria investigação científica, «as ciências positivas não-filosóficas, não são ciências últimas, absolutas, que se justifiquem por últimos fundamentos cognoscitivos», e encerram «problemas básicos”e «paradoxos», que ulteriormente à sua constituição se «procura remediar mediante uma teoria do conhecimento tardia e até demasiado tardia» (Ibid.).

A investigação da radicalidade extrema do fundamento e o tratamento da «Filosofia como ciência de rigor”afastaram completamente Husserl do «ideal do filósofo compor de uma vez para todas uma Lógica, uma Ética e uma Metafísica sistematicamente cerradas que ele pudesse justificar a todo o momento aos seus próprios olhos e aos de outrem, partindo de uma evidência absolutamente forçosa”(ibid.); e, consequentemente, a renúncia, ou talvez mais propriamente a suspensão da sua meditação em relação aos temas teocêntricos, antropocêntricos, de conceção do Mundo e da Vida, de ontologia (no sentido tradicional) e de axiologia, assim como a tomada de posição em relação às soluções filosóficas designadas de realismo e de idealismo, de monismo, de dualismo, de pluralismo, etc.

«Nada pressupusemos nas nossas afirmações fundamentais, nem sequer o conceito de Filosofia, e assim queremos ir fazendo em adiante. A epoché filosófica que nos propusemos praticar deve consistir... em nos abstermos por completo de julgar acerca das doutrinas de qualquer filosofia anterior e em levar a cabo todas as nossas descrições no âmbito desta abstenção » (Id., § 18).

Como o Descartes do Cogito, mas não como o Descartes que apressadamente abandonara o mundo das cogitationes pelo mundo extramental do cogitatum, Husserl empreendeu o ingente cometimento, que lhe absorveu a vida, de fundamentar e de refazer a Filosofia desde a raiz última a que pode chegar o pensamento estritamente racional, pondo ao mesmo tempo a nu a sem razão do ceticismo e do relativismo. Esta era, no seu próprio dizer, a «grande tarefa do nosso tempo», a qual só podia ser levada a cabo fora das posições doutrinais que a História do pensamento mostrava terem sido impotentes e, portanto, começando de novo e com método novo.

Não seria, porventura, uma pretensão sem base?

A «marcha triunfal» da Ciência, «a que nada se oporá», a universalidade dos «seus fins legítimos”e o facto da Ciência ser «pensada na perfeição ideal», pelo que pode considerar-se expressão da «própria Razão, que não poderia ter outra autoridade igual ou superior», não tornam, porventura, desnecessária a tarefa que se proponha a fundamentação absolutamente radical da Filosofia como ciência de rigor?

Se se pretender que a Filosofia deve ser ciência rigorosa à maneira das ciências da Natureza, basta colocá-la na linha das ciências naturais, em cujo âmbito entram «todos os ideais teóricos, axiológicos e práticos» e que constantemente se afirmam pela «superabundância de conhecimentos rigorosos»; e se se pretender que a Filosofia pertence às Ciências do Espírito, integra-se no Historicismo, que resultou da «descoberta da História» e da fundamentação das ciências morais que se foram multiplicando».

Ambas estas conceções da filosofia se apresentavam com vitalidade na época em que Husserl meditava a fundamentação radical da Filosofia como ciência rigorosa; por isso, a par da edificação, teve também de demolir e de afastar as justificações racionais que impediam ou desviavam o caminho do seu pensamento no sentido da constituição autónoma da Filosofia como ciência rigorosa, ou mais propriamente, como a ciência de rigor.

As Investigações Lógicas, cujo primeiro volume saíra em 1900 e o segundo em 1901, haviam refutado o psicologismo, mostrando de forma exemplar a independência da Lógica relativamente à psicologia do pensamento. Dentre outras muitas coisas, as Investigações Lógicas mostravam que o pensamento estrito que justifica e nutre a filosofia não era identificável nem assimilável pela Psicologia, nem por qualquer outra ciência particular; agora, passados dez anos, e como que nas vésperas da publicação das Ideias para uma Fenomenologia Pura e uma Filosofia Fenomenológica, cujo primeiro volume saiu em 1913, Husserl dava algumas precisões acerca do que entendia por Filosofia como Ciência de Rigor e, sobretudo, discriminava este conceito de Filosofia do propósito «de uma reforma rigorosamente científica da Filosofia”no sentido das ciências da Natureza e da função doutrinal e ideológica de qualquer mundividência com base historicista.

Vejamos, pois, separadamente, a crítica de Husserl a estes dois objetivos do ideal da Filosofia e por fim, como remate, o conceito que lhes opõe.

O ideal da Filosofia como ciência de rigor, ou por outras palavras, como Ciência fundamental tendo por objeto «o esclarecimento decisivo sobre as condições de uma ciência de rigor, ingenuamente ignoradas ou mal compreendidas pela filosofia anterior», é o ideal que orienta e anima as «viragens decisivas para o progresso da Filosofia». Nestas ocasiões, «a energia pensativa”é dominada «pela vontade consciente da reorganização radical da Filosofia no sentido de uma ciência de rigor»; assim, as filosofias socrático-platónica e cartesiana foram animadas por este propósito, o qual se renovou «com a violência mais radical na crítica da Razão pura de um Kant e dominando ainda o filosofar de Fichte».

Em todas estas ocasiões, a consciência reflexiva tomou uma posição instauradora e constituinte e a Filosofia teve por objeto capital a indagação do ponto de partida, o exame do método mais adequado e a formulação dos problemas fundamentais em ordem à reorganização da Filosofia ab ovo sob as exigências de ciência rigorosa. A instância deste ideal relaciona-se sempre com uma conjuntura dominada por tendências céticas ou relativistas. Foi assim com Sócrates, com Platão, com Descartes, e assim foi também com Husserl.

Com efeito, a ideia de relativismo, ou seja o desterro da conceção da existência de princípios absolutos, dominava intelectualmente a época da transição do século passado para o século atual. Dissessem-se positivistas, empiristas, psicologistas, historicistas, céticos, etc., todas estas correntes coincidiam no repúdio da metafísica como sistema de reflexões sem fundamento real e, de modo geral, na redução da Filosofia ao plano das ciências. Daí, a convicção universal de que somente o pensamento cientificado é digno de acesso e de credibilidade; consequentemente, -a superação deste ponto de vista carecia de fazer-se com inteira submissão às exigências do espírito científico, isto é, não opondo crenças a juízos, predicações a resultados científicos, ideais subjetivos a realidades demonstradas, mas mostrando com a luz da Razão, e somente com ela, que a Filosofia tem por objeto assuntos que se não opõem à Ciência nem ao pensamento cientificado.

Filosofia e Ciência não são, pois, antagónicas, mas a relação a estabelecer entre uma e outra pode ser diversamente entendida. Pode pensar-se com alguns positivistas que à Filosofia pertence a generalização dos resultados das diversas ciências particulares, em ordem à unificação dos conhecimentos, e com os neo-kantianos, da escola de Marburgo, que ela tem por objeto próprio a teoria do conhecimento, entendida principalmente como reflexão crítica das condições que possibilitam a existência da Ciência.


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