Introdução à filosofia como ciência de rigor de Husserl

O Naturalismo é incontestavelmente legítimo enquanto «procura realizar o princípio do rigor científico em todas as esferas da Natureza e do Espírito na teoria e na prática», pois «talvez não haja outra ideia mais poderosa, mais progressiva, em toda a vida moderna, do que a da Ciência», a cuja «marcha triunfal nada se oporá». Cientificar a Filosofia, ou por outras palavras, desterrar do ideal da Filosofia a ideação acerca do Mundo e da Vida na qual a opinião subjetiva ocupa o lugar do juízo exato, é aspiração não só legítima mas necessária, mas a divergência logo surge quando se examina a maneira como deve ser levada avante a cientificação.

O Naturalismo assume uma posição franca, a qual consiste em «naturalizar as ideias e a consciência», e, portanto, em subordinar, ou talvez mais exatamente, em reduzir o ideal da Filosofia como ciência de rigor ao ideal das ciências da Natureza. «O Naturalista, escreveu Husserl, não depara senão com a Natureza, a começar com a Natureza física. Tudo o que é, ou é, ele mesmo, físico, ou, apesar de psíquico, é mera variação dependente do físico, na melhor das hipóteses, «facto paralelo, concomitante» secundário. Tudo o que é, é de natureza psicofísica, inconfundivelmente determinado segundo leis firmes».

Resgatar a Filosofia desta adulteração impôs-se à consciência reflexiva de Husserl como tarefa urgente e imperiosamente necessária à própria existência da Cultura, a cujo destino o ceticismo é fatal. A assombrosa capacidade de problematização e de análise do génio de Husserl não teve outra aplicação ao longo da sua existência de infatigável trabalhador, mas, como é óbvio, somente importa considerar a sua reflexão demonstrativa de que o ideal da Filosofia como ciência de rigor não é redutível ao ideal da Ciência da Natureza, ou por outras palavras, que na reflexão que se aplica à Filosofia como ciência de rigor se não dá, como na ciência da Natureza, a «naturalização das ideias» e a «naturalização da consciência».

Por «naturalização da consciência e das ideias» entende Husserl a conceção que nivela, ou antes equipara, os dados da consciência a factos naturais e as normas da razão lógica a leis naturais do pensamento. O Naturalismo, fazendo a equiparação, obedece com mais ou menos consciência ao propósito de reduzir o ideal da Filosofia como ciência de rigor ao plano do ideal das ciências empíricas, de sorte que o problema que cumpre examinar é o do fundamento destas «naturalizações». Atentemos em cada uma de per si.

A constituição e desenvolvimento da Psicologia Experimental no último quartel do século passado abriu largo crédito de esperança à recém-vinda «ciência», dando ensejo, dentre outras conceções, a que, por um lado, os fenómenos psíquicos fossem considerados como factos, a exemplo das ciências da Natureza, e por outro, que a Lógica fosse tida como psicologia do pensamento. A primeira destas conceções implica que as leis psicológicas sejam estabelecidas a posteriori, isto é, indutivamente e, portanto, que a sua normatividade seja provável e não apodítica; e a segunda, além disto, que os princípios lógicos radiquem o seu fundamento na constituição psicológica do sujeito cognoscente.

São estas conceções, partilhadas com mais ou menos radicalismo por lógicos e psicólogos como John Stuart Mill, Teodoro Lipps, Sigwart, Wundt, etc., e, de modo geral, pelos epígonos do Positivismo, que Husserl compreende na expressão «naturalização das ideias», sendo contra elas que escreveu os «Prolegómenos à Lógica Pura», os quais constituem a introdução e o volume primeiro das Investigações Lógicas.

Os Prolegómenos publicados em 1900 e que logo assinalaram as Investigações Lógicas como criação aurorai do século em que vivemos e do pensamento que mais originalmente o nutre, tornaram claro, senão definitivo, que a essência do pensamento lógico se não confunde com as condições psicológicas em que ele se produz. Discriminava-se a validade lógica do juízo do ato psicológico de julgar, mas ninguém como Husserl levou tão fundo e tão longe a prova da autonomia do pensamento estritamente lógico, ou por outras palavras mais precisas, que os «princípios lógico-formais, as chamadas leis do pensamento [não devem ser interpretadas] no sentido de leis naturais do pensamento».

A magistral argumentação de Husserl nos Prolegómenos põe a claro que as leis lógicas não implicam a materialidade de facto nem são leis em relação a fenómenos da vida psíquica. A sua normatividade puramente ideal é condição da verdade e a necessidade que lhes é inerente é a priori e não generalização da experiência: se as normas estritamente lógicas se fundassem na Psicologia considerada como ciência natural tornava-se inexplicável a necessidade inerente às demonstrações matemáticas e científicas, em geral.

A refutação da «naturalização das ideias» conduzia à conceção, de extraordinário alcance, dos conceitos, juízos e raciocínios serem considerados analogamente aos números e às operações numéricas, as quais pelo facto de também serem fenómenos psíquicos ninguém dirá que a Matemática tem o seu fundamento ou é um capítulo da Psicologia.

A crítica da «naturalização das ideias» mostra que a Lógica, « índice exemplar de toda a idealidade», não é redutível à Psicologia nem está para a esfera dos conhecimentos psicológicos como «a agrimensura para a geometria » (Inv. Log., 1, 17); com a crítica da «naturalização da consciência”Husserl vai mais longe, por que, aprofundando e desenvolvendo a mesma conceção, pretende mostrar que a Ciência Natural em geral e a Psicologia Experimental como seu ramo e como expressão mais recente, «embora ainda rudimentar, da filosofia exata, análoga à mecânica exata», não são, nem podem vir a ser a «Ciência fundamental de rigor», e portanto, «a ser Filosofia no sentido específico» nem a «servir de base à Filosofia».

As largas esperanças depositadas na Psicofísica, fundada por Fechner, e mais amplamente na Psicologia Experimental que se lhe seguiu, levaram alguns pensadores a crer, pondo os olhos na «turva filosofia renascentista da Natureza, perante a vigorosa Mecânica exata de um Lavoisier», que «a Psicologia exata seria naturalmente a base de todas as Ciências do espírito e bem assim da Metafísica, embora no caso desta não seria a base preferida, visto a ciência física concorrer de modo igual para a fundamentação desta teoria mais geral da realidade». A «naturalização da consciência”é a expressão que condensa esta conceção da Psicologia e das esperanças nela depositadas, de sorte que a crítica de Husserl tem em vista mostrar que para além, ou mais exatamente aquém da Psicologia Experimental enquanto ciência natural, há uma outra «ciência, cuja amplitude os contemporâneos ainda não imaginam, e que, apesar de ser ciência da consciência, não é psicologia: — a Fenomenologia da Consciência oposta à Ciência Natural da Consciência.


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