Introdução à filosofia como ciência de rigor de Husserl

Consequentemente, a segunda parte da crítica à «Filosofia naturalística”da presente tradução (pp. 13-47) aponta primeiramente as razões por que a Ciência Natural e a Psicologia considerada no plano das ciências da Natureza não podem servir de base à Filosofia e portanto dar fundamento científico não só à Lógica, como já vimos, mas também à Teoria do Conhecimento, à Estética, à Ética e à Pedagogia.

Com efeito, a Psicologia Experimental e as ciências naturais são «ciências de factos», o que desde logo as impossibilita de proporcionarem «fundamentos às disciplinas filosóficas que lidam com os princípios puros de toda a sujeição a normas, portanto à Lógica pura, à Axiologia e Prática puras». Além disto são ingénuas, isto é, apercebem a existência das coisas e dos factos simplesmente, descrevendo-as «em simples juízos empíricos». A Ciência Natural explica os factos mas não explica o pensamento científico-experimental que a estrutura e constitui, propondo um conjunto de problemas que saem do âmbito da Ciência Natural para formarem objeto da Teoria do Conhecimento.

A refutação da «naturalização das ideias» deixara estabelecido que a Lógica pura não é mero produto de mecanismos psicológicos; analogamente, a refutação da «naturalização da consciência”vai estabelecer que na consciência psicológica originária se não dá a identidade do facto psíquico e do objeto conhecido.

É tópico do psicologismo empirista que o eu se dá à intuição imediata corno uno e indivisível, e que a parte do eu conhecida pelos sentidos externos dá o conhecimento dos corpos, e que a parte conhecida pelo sentido interno dá o conhecimento do eu, no significado restrito. Stuart Mill, por exemplo, afirmara a identificação da sensação com as propriedades do que é sentido; e Wundt, talvez o psicólogo que Husserl mais diretamente tem em vista quando alude à censura das investigações fenomenológicas serem «escolásticas», repudia no Grundriss der Psychologie a noção de Psicologia como ciência da experiência interna, por dar ensejo a pensar-se que os objetos que a Psicologia estuda são diversos dos da experiência externa, objeto das Ciências da Natureza. As representações são umas e as mesmas na Psicologia e nas Ciências da Natureza, porém, com a diferença de que na Psicologia são estudadas tal qual se dão na experiência imediata e nas Ciências da Natureza o são enquanto dadas na experiência mediata, isto é, não em relação com o sujeito mas com os objetos.

Contra esta conceção da identidade do psíquico e do físico, como expressão de uma única realidade que pode ser estudada sob dois pontos de vista diversos com a ajuda de um método que «seguisse o               exemplo do método físico-químico», isto é, a «Ciência natural da consciência», ergueu Husserl a sua conceção da Fenomenologia da Consciência, isto é, a descrição da consciência pura e originária ou seja a análise do que se apresenta primária e fundamentalmente anterior a toda e qualquer relação ou explicação científica. Mediante esta análise, que se perfaz, como veremos, com a «perceção fenomenológica do Ser”e consequente distinção categorial do ser real e do ser ideal, do ser espécie e do ser individual, e discriminação das «ontologias regionais», ou fenomenologias particulares, Husserl dissipa o erro nuclear da «naturalização da consciência», o qual consiste em coisificar a consciência, isto é, em a considerar categorialmente como coisa que existe somente à maneira dos objetos que constituem a Natureza, tida aliás como expressão única e total do Ser.

Pelos pressupostos e fundamentos, a Ciência Natural e a Psicologia Experimental enquanto ciência «naturalizada”não podem fundamentar nem constituir o ideal da Filosofia como ciência de rigor. Quer isto dizer que este ideal somente pode ser prosseguido pelas ciências particulares e que, por consequência, à Filosofia somente resta a Ideologia, isto é, converter-se em conceção geral do Mundo e em 'ideário da Vida, sem as exigências do rigor científico?

A conceção da Filosofia com base na «naturalização das ideias e da consciência”radica, como acabámos de ver, no êxito indiscutível das Ciências da Natureza e representa a desvirtuação do ideal da Filosofia como ciência de rigor. Algo de semelhante se passa em correlação com as ciências morais, ou do espírito, como ulteriormente se disse, porque também surgiram teorias do conhecimento e conceções gerais em direta consonância com o extraordinário desenvolvimento dos estudos históricos, ou mais propriamente do mundo da cultura.

Com terem objetos diferentes, o Naturalismo e o Historicismo obedecem, não obstante, à mesma «superstição dos factos», pois interpretam as ideias como factos e concorrem para «transformar toda a realidade, toda a vida, numa mistura incompreensível de «fatos » e de «ideias ». Enquanto o Naturalismo radica nos «fatos» da Natureza, o Historicismo «toma posição na esfera dos factos da vida mental empírica» e como ele conduz igualmente ao Relativismo, com análogas «complicações céticas», e, portanto, com idêntica incompatibilidade com o ideal da «Filosofia como ciência de rigor». Consequentemente, Husseri não podia deixar de tomar posição também contra o relativismo historicista, tanto mais que sobre este se erguera o ideal da Filosofia como mundividência, isto é, como expressão de anelos sociais, de ideários e de simbologia cósmica, cujos fundamentos são opostos ao ideal da Filosofia como ciência de rigor.

As Investigações Lógicas não tiveram em conta a consideração histórica, assim no sentido da indagação como no de desenvolvimento e mutação. Husseri pensou-as, como vimos, contra os relativismos psicologistas, olhos fitos no absolutismo e atemporalidade das verdades estritamente lógicas, e, portanto, não considerou a problemática relativa à mutabilidade das condições genéticas e evolutivas. A sua reflexão, porém, não podia subtrair-se à ascendência da «historicidade» do espírito no mundo do pensamento e ao apelo dos complexos problemas e sugerências que ela desentranha.

A primeira oportunidade, segundo cremos, não foi alheia à influência de Dilthey e deu ensejo à secção final de A Filosofia como Ciência de Rigor; a segunda, radica na instância da existência pessoalmente vivida, porque, como escreve Paul Ricoeur, foi «o próprio trágico da história que inclinou Husserl a pensar historicamente. Suspeito aos nazis por não-ariano, por pensador científico, mais fundamentalmente, por génio socrático e interrogador, reformado e condenado ao silêncio, o velho Husserl não podia deixar de descobrir que o espírito tem uma história que importa a toda a história, que o espírito pode estar doente e que a história é para o próprio espírito o lugar do perigo, da perda possível ». As últimas reflexões (1935-1938), que se coordenam na Crise das Ciências Europeias e a Fenomenologia Transcendental, aliás, em grande parte ainda inéditas, incidiram sobre a própria constituição da História, mas as primeiras, diretamente relacionadas com o ideal da Filosofia como ciência de rigor, tiveram somente por objeto a refutação do relativismo historicista e da conceção da Filosofia como ideário e mundividência. São estas as que mais diretamente importa notar.


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