Husserl coincidiu com Dilthey (1833-1911) em reconhecer «o imenso valor que a História tem para o filósofo» e em considerar «a descoberta do espírito coletivo tão significativa como a da Natureza». É que a seu juízo, a exploração do emundo do espírito oferece «ao filósofo um material mais original e fundamental do que o da penetração na Natureza»; e além disto, coincidiu ainda com o pensador da Estruturação do Mundo Histórico pelas Ciências do Espírito na «impossibilidade da psicologia psicofísica servir de fundamento às ciências morais» e em encontrar na capacidade de expressão e de objetivação das vivências (Erlebnis) a condição das « formações culturais » e respetivas estruturas, tipologia e”relações evolucionais ».
Consequentemente, Husserl teve por sem dúvida que as «formações mentais”e «culturais» possuem estruturas que lhes são peculiares, apresentando tipos e formas, intrínsecas e extrínsecas, que nascem, se transformam e dão lugar a novas formações. No mundo natural existem espécies fixas, estruturadas por elementos fixos; no mundo histórico, não, porque «tudo o que parece fixo, é uma corrente da evolução».
O mundo da história é, assim, o mundo da mudança e do particularismo, de sorte que somente se torna «compreensível», «explicável”na particularidade do «Ser» que é justamente «ser mental», unidade de momentos, de intrínseca postulação mútua, de um sentido, e ao mesmo tempo unidade de formação e evolução adequada à motivação intrínseca».
A concisa densidade destes períodos é suficiente para mostrar que Husserl coincidiu com Dilthey em que o filosofar somente pode firmar-se no concreto da experiência vivida, que a psicologia verdadeiramente instrutiva é a psicologia descritiva e intuspetiva, e que o saber histórico--cultural não é saber de objetos, como o saber natural, porque é um saber que vai da expressão ao expressado, dos materiais inertes à vida que os alentou.
Em síntese, Husserl coincidiu em parte com Dilthey em reconhecer a existência do elemento histórico como inerente à constituição humana, dado o homem ser consciência do seu passado, e, portanto, em atribuir à História, isto é, às ciências do espírito, a função de proporcionar a compreensão da estrutura morfológica da Arte, da Religião e da Filosofia enquanto realizações culturais. E dizemos em parte, porque, de acordo com o penetrante juízo de Emmanuel Levinas, l'historicité de la consciente n'apparait pas comme son phénomène originaire parte que l'attitude supra-historique de la théorie étaye, d'après Husserl, toute notre vie consciente. La représentation admise comme base de tous les actes de la conscience — voilà ce qui compromet l'historicité de la conscience et confère, par conséquent, un caractère intellectualiste à l'intuition».A partir daqui, a divergência foi diametral. Das sondagens penetrantíssimas na fenomenalidade vivencial e cultural, Dilthey extraíra a lição de que a Filosofia é uma expressão temporal do pensamento, a qual radica em dados subjetivos e vividos e se dirige à conceção do Universo como todo ou à apreensão do ser latente sob a aparência das coisas e dos acontecimentos. É sempre uma construção pessoal, e só pessoal, e pela intransferibilidade das condições, a História desentranha da Vida tantas filosofias quantas as maneiras possíveis de pensar o todo com alguma coerência lógica e alguma consistência científica, e tantos problemas quantos os fitos da dúvida ou da inquietude. Não há, pois para o profundo teorizador das ciências do espírito, uma só filosofia verdadeira e não a há, porque o Mundo e a Vida como objetos pensáveis não são separáveis do pensamento que os pensa; e porque cada ser humano é uma determinação limitada da natureza humana, cada pensador, e consequentemente cada filosofia, encarna somente uma das múltiplas possibilidades do viver, do sentir e do pensar. A história das atitudes e dos sistemas filosóficos, se por um lado mostra que o impulso filosófico é constante, por outro também mostra que as concreções do pensamento filosófico são subjetivas e estão situadas por coordenadas limitativas do tempo e do lugar. Por isso, somente ficava aberta a delineação de uma «Filosofia das filosofias», ou seja a configuração do Homem total pelo conhecimento total das suas expressões históricas.
A conceção da «Filosofia das filosofias» compagina-se com as conceções positivistas da Filosofia como”saber unificado”ou como «sistematização das conceções científicas», mas quaisquer que fossem as respetivas correlações o fundamento historicista em que se apoiava privavam-na de valor absoluto. O ideal que a nutre é toto coelo antagónico do ideal de Husserl, que considerava a Filosofia, «por essência, uma ciência dos inícios verdadeiros”e «do radical», cujo impulso indagador «não é das filosofias que deve partir, mas, sim, das coisas e dos problemas». Consequentemente, o Historicismo é «uma aberração gnosiológica, tão severamente refutável em virtude das suas consequências absurdas como o Naturalismo».
É que «a História não tem argumentos relevantes a opor, nem à possibilidade de valores absolutos em geral, nem à possibilidade de uma Metafísica absoluta, isto é, científica, e de outra Filosofia, em especial». As razões históricas somente podem originar «resultados históricos»; e porque é contrassenso refutar ideias com factos, o velho argumento cético da anarquia dos sistemas filosóficos somente prova que as filosofias historicamente produzidas operaram «com conceitos confusos» e que os problemas filosóficos não foram formulados exatamente, porque se o forem, «deve ser possível acertá-los e deve haver problemas acertados».
Da situação de facto não é, pois, legítimo passar para a questão de princípio, visto não ser com «resultados históricos» que se decide do valor das doutrinas, o qual reside «nas esferas ideais» e não na temporalidade dos acontecimentos.
O Historicismo, de par que contesta a possibilidade da Filosofia como ciência de rigor, estabelece o ideal da Filosofia como ideologia, isto é, como conceção do Mundo e da Vida. Husserl reconhece os «altos valores”que a filosofia ideológica põe em jogo, mediante os quais, «uma vez surgida da consciência coletiva da sua época, e impondo-se ao indivíduo com o vigor convincente do valor objetivo, com todas as suas disciplinas deve tornar-se uma potência sumamente significativa para a Cultura, um foco das mais valiosas energias informativas para as mais valiosas personalidades coetâneas».
Os valores de sabedoria e virtude que nutrem o ideal da Filosofia como Ideologia são valores supremos, mas não são valores únicos, porque também são valores supremos os que nutrem o ideal da Filosofia como ciência de rigor. No passado, os grandes sistemas filosóficos conjugaram na construtura o ideal da sabedoria com o ideal da ciência rigorosa. Foram, a um tempo, Ideologia e Ciência, mas a consciência moderna separou «para toda a eternidade» estes dois objetivos, tão «rigorosamente» que «devemos» aceitar a distinção das ideias de Cultura ou Ideologia e de Ciência «como facto contínuo que tem de determinar correspondentemente as nossas posições práticas».