Introdução à filosofia como ciência de rigor de Husserl

A primeira característica, fundamental, do mundo do cogito ou, o que é o mesmo, dos atos de consciência enquanto tais, é a intencionalidade. Significa esta palavra, que Husserl colheu em Brentano e que impregnou de densidade e de alcance, que a consciência é sempre «consciência de algo», isto é, acompanha-se sempre da referência a algo, sobre o qual se projeta ou para o qual se orienta. A consciência é, pois, considerada como centro de intencionalidades —, o que importa a distinção do facto psíquico, enquanto tal, e do objeto intencional, ou seja o correlato ou referência do ato psíquico.

Aprofundando esta distinção, nas Investigações Lógicas (II) e principalmente nas Ideias, Husserl considerou que as sensações são a matéria ou momento hilético do conhecimento e a intencionalidade, o momento noético, de sorte que a vida da consciência tem um aspeto material, ou hilético, e um aspeto formal, ou noético. Um e outro são momentos da vida da consciência, mas não esgotam completamente o ato de consciência na respetiva imediatidade. É que a consciência, sendo intencionalidade e noesis, contém a referência a noemas, isto é, os atos de consciência cognoscente apresentam-se postos perante objetos percebidos ou entendidos, que lhe são correlatos.

Por outras palavras: no ato cognoscente e ideatório, isto é, noético, a noesis é o aspeto subjetivo do elemento noético, e o noema, o aspeto objetivo deste mesmo elemento. Donde a possível direção de duas indagações: a das noesis, ou seja a fenomenologia orientada para o sujeito (Fenomenologia da consciência), e a dos noemas, ou seja a fenomenologia orientada para os correlatos da intencionalidade (Perceção fenomenológica do ser). Noesis e noemas são, assim, os polos extremos entre os quais se move a análise fenomenológica de Husserl, pois jamais se deve deixar de ter presente que o noema não é o objeto ou a coisa extramental, mas o ato noético enquanto se reporta a um objeto. A Fenomenologia de Husserl é ciência do que aparece à consciência, e do que esta intui, e não ciência de factos ou de realidades do mundo espácio-temporal, no sentido das ciências naturais.

Assim situado, a análise mostrou-lhe que o noema, quanto ao conteúdo, contém um «significado» e uma «posição», sendo a congruência destes dois elementos que formam a «proposição»; e quanto à estrutura, implica a existência como que escalonada de níveis diversos. Na base, um «dado”da experiência sensível; depois, as «essências hiléticas», ou essências eidéticas materiais, ou sejam as formas que exprimem a lei constitutiva das regiões do mundo empírico (círculo, azul, homem, etc.) e as essências eidéticas « formais » (igualdade, relação, etc.) ou categorias, que exprimem a correlação dos conteúdos conscientes com a estrutura formal da consciência cognoscente. As essências, hiléticas ou formais, são objetivas, porque, ao contrário de Kant, que viu nas categorias puras formas do entendimento, Husserl admitiu que, embora seja o entendimento que apreende as essências, elas são apreendidas como objetivas, isto é, como estruturas do ser. Daqui, a existência do a priori material, em contraste do kantiano a priori formal.

Um exemplo, colhido nas Ideias (§ 88), como que concretiza esta conceção da estrutura lógica do saber, indicando os diversos planos de presencialidades que se dão no ato de consciência noética. Suponha-se que alguém vê com agrado uma macieira em flor: é óbvio que o ver e o sentir agrado não são aquela macieira em flor, isto é, o objeto que é visto e suscita agrado.

As componentes da perceção (ou vivência) daquela macieira em flor podem ser diversamente encaradas. Assim, pode ver-se nelas o ser humano que perceciona, a perceção enquanto categoria de fenómenos psíquicos, e a macieira como objeto ou realidade extramental, que apresenta certas determinações e relações reais e constantes com a mente cognoscente. Quer dizer, podem estudar-se separada e autonomamente os estados psíquicos de perceção e de agrado, enquanto fenómenos psíquicos de perceção e de agrado, enquanto fenómenos psíquicos, e os objetos percecionados, enquanto seres cuja existência transcende a mente que os perceciona e se apresentam com determinações constantes. Husserl coloca tudo isto «entre parêntesis», como já dissemos, porque a sua pergunta consiste em saber, como no exemplo da macieira em flor, «com que nos encontramos essencialmente no complexo de vivências noéticas da perceção e da valoração que é o agrado» (Id., § 88).

O primeiro «dado”é a presencialidade daquela macieira em flor agradável à vista, mas a análise encontra outras presencialidades, como a macieira, enquanto árvore, a floração, o agrado, etc. Quer dizer que na intuição concorrem factos e essências, sendo factos aquela macieira e aquele agrado, isto o que é mutável, e sendo essências a macieira, a floração, o agrado, isto é, o estável e que contêm a possibilidade de se dizerem de múltiplos objetos. Estas essências, na terminologia de Husserl essências eidéticas materiais, reportam-se a certas regiões, mais ou menos vastas, do mundo empírico, mas estão, por assim dizer, próximas dos «dados» concretos da experiência sensível. A floração, com ser uma denominação potencialmente aplicável a incontáveis plantas em flor, é como que contígua ao «dado”de aquela macieira em flor. Acima destas essências, porém, a análise encontra ainda as «essências eidéticas formais», as quais, no exemplo, estabelecem a correlação da floração daquela macieira com as puras formas: objeto, realidade, afirmação, indubitabilidade, agrado, etc.

A toda a experiência singular e concreta, isto é, a todo o «fenómeno”ou dado patente à consciência, correspondem, assim, essências (eidos), mediante as quais as experiências, dados ou fenómenos se situam e ordenam numa «região», que representa a suprema unidade genérica relativa a essas experiências, fenómenos ou dados.

É. que os objetos não têm todos a mesma estrutura ontológica nem a mente os intui, representa ou pensa da mesma maneira. Assim, por exemplo, os objetos físicos, materiais e tangíveis, agrupam-se na região a que chamamos «natureza», que é formada por um conjunto de essências, como materialidade, cor, espaço, extensão, etc.; e a maneira como estes objetos são intuídos, representados ou pensados não é a mesma como são intuídos, representados ou pensados os objetos ideais da Matemática ou os valores da Ética ou da Estética. Por isso, cada região de objetos tem uma «ontologia regional» própria, ou por outras palavras, os objetos de cada região possuem uma maneira de ser que lhes é própria e uma maneira especial de se tornarem objetos da consciência.

O psicólogo experimental, fiel à mentalidade naturalista, pensa os fenómenos psíquicos como se fossem coisas ou acontecimentos do mundo espácio-temporal. Atribui-lhes o mesmo tipo de existência, isto é, naturaliza-os, pensando que há somente uma maneira de ser, que é o ser da Natureza, e consequentemente, que têm de ser estudados com as categorias da Ciência natural. A existência de regiões ontológicas diversas, correspondendo a cada uma delas, essências hiléticas e formais que fundamentam as ciências relativas às diversas regiões, arruína pela raiz a «naturalização das ideias e da consciência”e põe a claro a «perceção fenomenológica do ser», a qual «abre um campo imenso» de «amplas intelecções das mais rigorosas e decisivas para toda a Filosofia ulterior» e converte a Fenomenologia em ciência radical, a cujas «ontologias regionais», ou fenomenologias particulares, as ciências objetivadas vão buscar os respetivos fundamentos.


?>
Vamos corrigir esse problema