Os Opera Philosophica de Francisco Sanches

O pensamento filosófico de Francisco Sanches não foi ainda cabalmente considerado na estruturação dos problemas, nas raízes e correlações doutrinais, no dinamismo interno da desenvolução e na complexidade do seu significado histórico. Abundam os escritos a seu respeito, mas, descontando os informes documentais e algumas páginas de sentido biográfico, quase todos, salvo contadas exceções, padecem da confinação unilateral e da deformação das opiniões preconcebidas, por se empenharem em situar o pensamento sanchesiano na linha de algumas correntes hodiernas e passarem à margem da realidade epocal e circunstancial em que ele se produziu.

Devido, porventura, à raridade das obras reputadas minores, a atenção dos estudiosos tem incidido predominantemente sobre o Quod nihil scitur, moendo quase sempre, mormente entre nós e depois da tese deficiente e inconsistente de Emilien. Senchet (Essai sur la méthode de Francisco Sanchez, Paris, 1904), um grão peco e seco e substituindo a reflexão direta sobre os textos, no seu conjunto e na peculiaridade de cada um, pela erudição de segunda mão e pelo rodeio e desenredo de opiniões e de desacertos.

Urge, por isso, abandonar o caminho seguido e retomar o contato direto e imediato com as fontes, sem mediação de críticos e de expositores. Outro não é o objetivo da presente edição, na qual se reúnem os escritos filosóficos dados ao prelo por Francisco Sanches e por seus filhos, postumamente, uma epístola a Clávio dada a público em 1940 e alguns excertos da Opera medica que importam ao pensamento filosófico do nosso autor e muito principalmente ao conteúdo e teor do Examen rerum, uma das obras cujo texto não chegou até nós.

Com ânimo reconhecido, agradecemos ao Prof. Vincenzo Cocco e ao Dr. Abel de Almeida e Sousa a solicitude com que nos ajudaram na revisão das provas, sem a qual a presente edição não sairia a público, dadas as condições em que somos forçados a trabalhar.

Coimbra, Fevereiro de 1955.

Francisco Sanches foi um filósofo resoluto no pensar, mas não confidenciou em páginas autobiográficas nem em epístolas que até nós chegassem a história íntima das suas dúvidas e o sobressalto das inquietudes da sua consciência. O pouco que da sua biografia se sabe provém de documentos oficiais, inexpressivos e burocráticos, e do panegírico De officio mediei siue de vita clarissimi viri domini Francisci Sanchez, quam in exemplum omnibus medieis futuram, Raymundus Delassus, eius olim discipulus, seruato veritatis sacramento, candide exarauit, anteposto como preâmbulo à Opera medica do mestre tolosano, saída a público postumamente em 1636. É, pois, mais ou menos conjetural tudo o que se diga acerca da índole de Francisco Sanches e não estão isentos de dúvida alguns dos acontecimentos que servem de marco à própria biografia.

A determinação da nacionalidade, do ano e do lugar do nascimento do autor do Quod nihil scitur, assim como a duração exata da sua vida, têm feito correr muita tinta na Alemanha, na Espanha, na França, na Itália e, principalmente, em Portugal.

Discutiu-se, e discute-se, se é português ou castelhano, se nasceu em 1550 ou em 1551, e se os seus olhos viram primeiramente a luz em Braga, em Valença do Minho, numa inominada localidade da arquidiocese bracarense, ou em Tuy, na Galiza.

Tanta divergência e discussão é prova manifesta de que se trata de questões insolúveis e que se tem ido pedir à verosimilhança de conjeturas mais ou menos plausíveis o que os documentos não podem dar com irrefragável certeza. Sem a luz de novos documentos talvez não mereçam ser reavivadas, mas a insuficiência da documentação atualmente conhecida não impede de maneira alguma que se preste atenção relevante ao registo autêntico do batismo de Francisco Sanches em 25 de Junho de 1551, na igreja de S. João do Souto, em Braga. A par do registo do enterramento em Toulouse, em 16 de Novembro de 1623, o registo de Braga impõe-se como acontecimento primário e fundamental. Temporalmente, dá a primeira data incontestável da biografia de Sanches, e socialmente, inculca Braga como o mais provável local do nascimento e indica o complexo de crenças que seus pais quiseram que ele tivesse e, de facto, adotou e ostensivamente afirmou na maturidade, em tempos de implacável e cruenta guerra de religiões.

Aventou Guy Patin, volvidos sete decénios (1701) sobre a morte de Francisco Sanches, que a família do médico-filósofo era de ascendência israelita; se assim foi, o que aliás se não pode provar nem invalidar documentalmente, Francisco Sanches estaria, muito provavelmente, em situação análoga à de Montaigne, cuja mãe, Antoinette de Louppes (isto é, Lopes), pertencia a uma família israelita cujos antepassados haviam emigrado de Portugal. Seria tão fácil quanto inútil a sondagem caracterológica de Sanches, em especial sobre a persistência do chamado «espírito judaico”no feitio instável e nas tendências reservadas, assim como a atitude suspicaz e a ausência de patriotismo, que os documentos e os escritos deixam adivinhar, porquanto, se pelo nascimento foi cristão-novo, na conduta procedeu como cristão-velho.

Na vida pública de Francisco Sanches não se denuncia qualquer indício que ponha em dúvida a sinceridade da sua fé católica, e na vida doméstica é significativo que os dois filhos varões que lhe nasceram do primeiro matrimónio, Dinis e Guilherme tivessem sido sacerdotes. O panegirista Raimundo Delassus não se esqueceu de acentuar «a sua admirável devoção a Deus, de quem dizia ser a fonte perene de todos os bens e nomeadamente o fautor da restituição da saúde»; e o próprio Sanches em vários passos dos seus escritos confessou abertamente o credo católico — nobis vero Catholicis, diz por exemplo, no De diuinatione per somnum, ad Aristotelem — e com manifesta intenção deu fecho ao De longitudine et breuitate vitae e ao In lib. Aristotelis Physiognomicon commentarius fazendo seguir o interrogante Quid? do reverente Laus Deo Virginique Mariae.

À reiterada confissão religiosa não correspondeu, porém, o cultivo de temas teológicos. Sanches foi sóbrio de juízos em matéria religiosa e os poucos que deixou soltar da pena não têm densidade nem significação. A sobriedade, relacionada com a irresistível tendência racionalizante do seu espírito, pode até originar a suspeita de que Sanches, no íntimo, pensava com os sequazes da tese acomodatícia da dupla verdade — o que é verdadeiro teologicamente pode não o ser filosoficamente e vice-versa.

A tese, aliás, subjaz claramente na divergência do filósofo e do cristão acerca da eternidade da vida humana, no Quod nihil scitur, e no contraste da voluntas Dei e da Naturae ordo com que abre o capítulo XI do De longitudine et breuitate vitae e parece subjazer ainda no passo do De diuinatione per somnum ad Aristotelem em que Sanches, argumentando contra a demonomância de Cardano, declara acreditar, de acordo com o Evangelho, na existência de demónios, embora o não possa justificar com argumentos racionais; não obstante, outros passos mais significativos e expressivos, inclinam antes para a opinião de que não duvidou do antagonismo do pensamento cristão acerca do poder de Deus com o naturalismo pagão. 

Se a coerência e a constância da consciência religiosa de Sanches não oferecem dúvidas, por longe que se leve a dissimulação da descrença, aliás relativamente vulgar na sua época, o mesmo se não pode dizer dos seus sentimentos relativos ao país em que nasceu e ao que adotou e veio a ser o dos seus descendentes.           


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