Os Opera Philosophica de Francisco Sanches

Sob o ângulo do objeto, Sanches conclui igualmente pela impossibilidade da scientia perfecta, isto é, universal e essencial, ou seja, por palavras que não emprega mas subentende, a Metafísica, entendendo por tal a ciência do ser enquanto ser e raiz primeira das demais ciências.

Idêntica conclusão tira da observação do próprio ato de conhecer, isto é, como diz Sanches, do conhecimento, ou seja a relação entre o sujeito que conhece e a coisa a ser conhecida.

Sanches começa por advertir que não desenvolve este assunto por se propor tratá-lo no «lugar próprio», que seria o De anima, bastando esta advertência para mostrar que a sua reflexão crítica não tem estrutura gnosiológica mas psicológica.

Partindo da definição de conhecimento como «apreensão do objeto» (apprehensio rei), considera a noção de apreensão sinónima das de inteleção, perspeção  e intuição, mas distinta da de «receção», ou seja a mera capacidade de receber e de captar estímulos. Assim entendido, o conhecimento pode ser perfeito e imperfeito, mas não é legítima a divisão em interno e externo, isto é, obtido pela perceção interna e pelos órgãos dos sentidos, por ser uma só e a mesma a mente que conhece, qualquer que seja o modo por que obtém o conhecimento.

Somente a inteligência é ativa, pois os sentidos são meramente recetivos, isto é, não conhecem nem julgam, mas isto não significa que a atividade da inteligência seja uniforme. Sob dois pontos de vista pode ser considerada: o da objetividade e o da certeza.

Sob o primeiro, as puras criações da inteligência e «as coisas internas», como o querer, o cogitar, etc., não têm a consistência das coisas externas, porque nelas a inteligência «tateia como os cegos»; sob o ponto de vista da certeza, pelo contrário, «o conhecimento das coisas externas mediante o sentido é vencido pelo conhecimento do que em nós se passa ou por nós é produzido, pois estou mais certo de ter desejos e vontade e de pensar agora nisto e de haver há pouco evitado ou repelido aquilo, do que ver um templo ou Sócrates» (Qns., 32, 42-45; 33, 1).

Os dados imediatos da consciência, enquanto fenómenos psíquicos, são indubitáveis, mas o que se opinar acerca do respetivo conteúdo mediante raciocínios e palavras, transcendendo o dado empírico com generalizações e explicações teóricas, é cheio de dúvidas: «É para mim muito mais certo existir e ser branco este papel em que escrevo do que ele ser composto de quatro elementos, de nele estarem em ato e de ter urna forma diferente deles»(Qns., 33, 5-9). O conhecimento mais certo é, pois, o que advém pelos sentidos e não o que se obtém pelo discurso da razão, e, portanto, pelos silogismos, divisões, predicações e outras operações mentais.

Sendo mais certo o conhecimento sensível, tal não quer dizer que seja indubitável a referência intencional das perceções, isto é, que tenham a mesma força de credibilidade o ato psíquico de perceber e o ato epistemológico de referência da perceção à coisa percebida. O conhecimento sensível encerra dificuldades que também o invalidam intrinsecamente, como sejam as resultantes da maneira como os objetos estimulam os sentidos e as da forma como os próprios sentidos reagem aos estímulos, ora gerando sensações deformadas, ora discordantes.

As largas páginas que Sanches dedicou à discriminação das condições físicas das sensações e à acentuação dos erros e das ilusões dos sentidos dão fé, acima de tudo, dos seus dotes de observação e de análise, pois na estrutura dos seus raciocínios subjazem alguns dos argumentos dos céticos gregos. O seu objetivo, porém, tinha por fim demonstrar uma tese, sem fazer gala de inteira originalidade; por isso, o recurso ao arsenal do ceticismo grego se oferece também na análise da terceira condição do conhecimento perfeito: o indivíduo cognoscente. Como ser que existe no tempo e vive em e sob certas circunstâncias, o homem sofre inevitáveis limitações, que o impedem de atingir o saber perfeito. A brevidade da vida, as imperfeições do espírito e do corpo, a diversidade das tendências psíquicas e das condições sociais e ambientais, as dificuldades próprias de quem aprende e as faltas de critério de quem ensina, as mutações do organismo e da psique, a influência das afeções e das paixões, são outros tantos óbices que vêm juntar-se às dificuldades inerentes ao objeto e ao ato de conhecer, para impossibilitarem, conjuntamente, a constituição de uma ciência universal, essencial e absoluta.

A desenvolvida refutação da definição de Ciência como conhecimento perfeito do objeto, da qual damos o núcleo dos respetivos argumentos, deixando de lado os numerosos problemas e correlações histórico-filosóficas que eles suscitam, tem por base os «tropos”e a «etiologia» de Enesidemo e os argumentos de Agripa, que Sanches, decerto, conheceu pela leitura das Hipotiposes Pirrónicas de Sexto Empírico.

Como tal, pode realmente perguntar-se, com Senchet, se Sanches foi o último dos céticos gregos ou o primeiro dos céticos modernos, e até é legítimo dizer que as largas páginas dedicadas à refutação da conceção da Ciência como conhecimento perfeito do objeto repensam e aplicam à teoria aristotélico-escolástica da Metafísica como ciência primeira, essencial e fundamental, a argumentação dos céticos do começo da nossa era contra o dogmatismo dos estoicos. De Enesidemo, em especial, porque, como o cético de Alexandria, Sanches considera a possibilidade do conhecimento perfeito relativamente ao objeto, ao sujeito cognoscente e à relação de um para o outro, e como ele conclui que a verdade não é cognoscível pelo discurso racional, nem tão-pouco pelos sentidos e pela conexão daquele e destes.

O inegável paralelismo não atinge, porém, o cerne do Quod nihil scitur. Sanches não se propôs demonstrar nesta obra a ilegitimidade de todo e qualquer juízo predicativo e afirmativo, mas somente a inconsistência do conceito da Ciência como saber universal e essencial, a partir de cujas verdades primeiras se possam alcançar outras verdades; por isso, não conclui pela suspensão do juízo e remata o requisitório contra os falsos conceitos de Ciência anunciando na derradeira página do Quod nihil scitur o propósito de se ocupar da fundamentação do conceito da ciência firme e fácil, sem arquétipos nem predicamentos: Mihi namque in animo?est firmam, et facilem qivantum possim scientiam fundare: non vero chimaeris et fictionibus a rei veritate alienis, quaeque ad ostendendum sol um scribentis ingenii subtilitatem, non ad docendas res comparatae sunt, plenam (53, 25-29).

A bandeira de guerra à possibilidade em geral de conhecer que o Quod nihil scitur do título da primeira edição parece arvorar, não corresponde, pois, ao arrazoado de Sanches; por isso, é exato e preciso o título da segunda edição, de 1618, no qual o «porque nada se sabe» é referido somente à Metafísica no sentido aristotélico, isto é, enquanto ciência do ser e dos primeiros princípios: De multum nobili et prima uniuersali scientia quod nihil scitur, e contra o qual polemiza não em nome de outra metafísica mas do senso comum e do conceito não fundamentado da unidade da experiência e do exercício da razão.


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