Os Opera Philosophica de Francisco Sanches

Daqui a legítima ilação de que o ceticismo de Sanches teve em vista diretamente a situação coetânea da conexão do pensamento científico com a tradição da metafísica aristotélico-escolástica, cujas teses afloram aqui e além, designadamente na alusão aos diversos sentidos de est, no que toca à essência, existência e à cópula no juízo, na teoria da eternidade das essências  e na conceção do nihil volitam nisi praecognitum.

Como acentuámos, o ceticismo de Sanches nasceu extrovertido e com índole polémica, olhos fitos no que se ensinava nas escolas e era tido por certo; por isso, não é, como o de Descartes, provisório e metódico. Foi, incontestavelmente, terminante e definitivo, mas somente em relação aos pressupostos e fundamentos da teoria aristotélica da Ciência e à metodologia dedutiva da lógica escolástica. Não duvidou da possibilidade de se constituir a Ciência independentemente da metafísica tradicional, com base e nos limites dos dados da perceção, assim como da validade de uma metodologia não silogística.

Experiência sensível e juízo adquirem, assim, importância fundamental, mas porque se perderam os manuscritos de Sanches, se é que chegou a ultimar os que diretamente se reportariam à epistemologia e à metodologia, é vedado saber a expressão conceptual que deu à conceção sensista do conhecimento, a quota que para a respetiva elaboração foi buscar aos céticos gregos e ao empirismo de Galeno, assim como, e principalmente, a maneira como procurou vencer as dificuldades insuperáveis da fundação de uma teoria da Ciência com base somente na empiria das sensações.

Quaisquer que sejam as origens, extensão e sentido do ceticismo de Francisco Sanches, é incontestável que o Quod nihil scitur estabelece a substituição da reflexão ontológica tradicional pelo exame da mente cognoscente. Em rigor, Sanches não chegou a esboçar, sequer, as linhas gerais da problemática autêntica da teoria do conhecimento, mas estabeleceu, as condições para que ela fosse formulada, principalmente sob o ponto de vista negativo, pela refutação do abstrativismo e do dogmatismo. Daqui, a significação histórico-filosófica de Sanches, pois a sua reflexão situa-se no ponto de partida da direção epistemológica característica da filosofia moderna, e apresenta como nota saliente a justificação da necessidade de uma metodologia orientada no sentido da observação sensível e concreta, graças à qual a definição como expressão do saber seja epílogo ou consequência e não princípio ou ponto de partida.

Nem só a teoria do Saber atraiu a reflexão de Sanches; outros problemas e temas mais particularizados, e com ela relacionados, se lhe impuseram também, tanto mais que por então se apresentavam como exigências da situação cultural.

É que, a par do dogmatismo na teoria do Saber, que era a doutrina em voga nas escolas, alguns espíritos esclarecidos, e até singulares, continuavam a prestar audiência e como que remoçavam as velhas e tenazes conceções do conhecimento divinatório e da astrologia judiciária. Assim, como exemplos mais significativos dentre os numerosíssimos que podem coligir-se, Jerónimo Cardano, de tão destacado lugar na história da Álgebra e cujo talento Sanches admirou, deu largo crédito às formas do ocultismo; e Jean Bodin, o insigne tratadista da filosofia política, tomou a sério o sortilégio dos bruxedos na Démonomanie des sorciers, vinda a público no mesmo ano do Quod nihil scitur.

O obscurantismo não é explicação satisfatória da voga e crédito de tais conceções em mentes tão altas e esclarecidas. A razão profunda da aceitação procede da interpretação da causalidade em sentido mágico--astrológico, tal como a repulsa e descrédito ulteriores procedem da substituição desta interpretação pela que o génio de Galileu soube tornar mais coerente, consistente e fecunda.

Sob certo ponto de vista, a astrologia é uma das raízes da Ciência moderna, enquanto concebeu a Natureza como sistema de acontecimentos não-casuais, mas sob outro, é anticientífica, enquanto estabelece correspondência entre acontecimentos que não têm entre si relação. Separar o real do fantástico, e mais precisamente mostrar a falta de correspondência entre os fenómenos celestes e os acontecimentos sociais e entre a atividade da razão cognoscente e a pretensa revelação de conhecimentos por via profética e oculta, impôs-se então como exigência da consciência racional.

Para Sanches, que se propusera remover do horizonte científico as abstrações que velavam e desfiguravam a «notícia» direta dos sentidos, a refutação de tais conceções constituía autêntica exigência racional, e, como cumpria, ela tinha de ser coerente com a estrutura e com o ritmo da conceção do Saber e da epistemologia sensista que subjazem ao Quod nihil scitur. Tinham de ser esta conceção e esta epistemologia, e não outras, ou sejam o tipo de conhecimentos e o sistema de ideias de que saíram a Revolução dos Orbes, de Copérnico, o Saggiatore e o Diálogo dos Máximos Sistemas, de Galileu. Por isso, o conceito sanchesiano da Natureza não coincide com a conceção físico-matemática de Galileu, e somente se deixa apreender quando se considera à luz das exigências epocais.

Ninguém pode furtar-se inteiramente à situação e às exigências do seu tempo, e Sanches viveu numa quadra em que a explicação aristotélica da Natureza se encontrava em crise e se não haviam constituído ainda a metodologia e o sistema de ideias que estruturam a ciência moderna. Daqui, a sucessão de duas instâncias principais: primeiramente, a justificação racional do naturalismo, metafísica e não exclusivamente física, de tudo o que ocorre no Universo e, mais tarde, com base nesta justificação, a constituição de um saber estritamente natural, rigorosamente científico e universalmente válido.

A primeira destas instâncias foi desenvolvida negativamente, isto é, pela refutação do maravilhoso e da causalidade sobrenatural, no sentido geral do termo, e positivamente, isto é, pela conceção de que a Natureza pode ser explicada por princípios estritamente naturais; a segunda instância, assente já firmemente na noção de lei científica, manifestou-se com a constituição da ciência moderna e com a consequente renovação da problemática filosófica, pois Descartes e os seus epígonos não são compreensíveis nem explicáveis sem a nuova scienza de que Galileu foi expressão decisiva e genial.

A teoria sanchesiana da Natureza somente é compreensível à luz da primeira destas instâncias e não da segunda, isto é, à luz da atitude donde brotou a filosofia naturalista do Renascimento, principalmente de Bernardino Telésio e dos seus continuadores, e não à luz da atitude donde brotou a «nova ciência”de Galileu. Consequentemente, o nome de Sanches não se inscreve entre os descobridores de conhecimentos exatos no domínio das ciências experimentais, mas é inseparável dos que tornaram possível tais descobridores pela refutação das conceções que obstavam a que a Natureza fosse explicada por princípios estritamente naturais, iuxta propria principia, no expressivo dizer de Telésio.


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