Os Opera Philosophica de Francisco Sanches

Por isso, coerente com a sua posição epistemológica e com a tendência extrovertida e polémica da sua constituição mental, Sanches criticou no Carmen de cometa, que foi a primeira obra que deu a público, a legitimidade dos presságios astrológicos, não reconheceu consistência, nos comentários ao De crisibus, de Galeno, à plena validade dos dias críticos ou decretórios, e contestou, no De diuinatione per somnum ad Aristotelem, a consistência de quaisquer conhecimentos adquiridos por via onírica, profética ou demoníaca, isto é, por via não sensível e discursivamente racional. Sinceramente religioso, Sanches não pôs em dúvida a existência de acontecimentos sobrenaturais, mas somente no plano da Revelação e da crença; porém, como filósofo que se coloca no terreno da «ciência natural», não reconheceu sombra de fundamento às previsões e informes que não radiquem, como ele próprio diz, «na razão e na experiência».

Coerentemente, a fenomenologia do conhecimento ilegítimo constituiu, assim, o objeto constante, senão predominante da reflexão filosófica de Sanches, bem manifesta nas páginas do Quod nihil scitur e na raiz da problemática do In diuinatione per somnum ad Aristotelem e do In librum Aristotelis Physiognomicon Commentarius.

Estes comentários, que não são orientados filológica ou historicamente, obedeceram, porventura, a exigências didáticas, dado os tratados dos Parva naturalia ocuparem lugar predominante na sua reflexão, mas pelo teor da lição que pretendem são como que a contraprova da fundamental conceção de Sanches. O que os caracteriza é a correlação do desenvolvimento das ideias com a conceção sensista do conhecimento, ou mais precisamente, o respeito pelo facto concreto e preciso, acompanhado do repúdio das abstrações e conceitos universais. Na conceção sanchesiana do Saber subjaz a noção de que a Ciência não dispensa um sistema de conceitos, mas os conceitos científicos não podem ser o produto meramente dialético da razão. Têm de ser consistentes, isto é de radicarem e de exprimirem concretamente uma relação direta com os factos. Daqui, Sanches ter afastado do horizonte da reflexão, o vago, o verbal e o meramente abstrato e ter insistido e praticado a observação dos factos, e não propriamente a experimentação.

No De diuinatione, esta atitude está expressiva e claramente afirmada neste passo: «... pode afirmar-se mais seguramente a inexistência do que a existência do que não conhecemos, salvo se esta for estabelecida pelo testemunho de muitos, não repugnar à razão ou esta convencer plenamente. Não creias que por conhecer entendo a ciência perfeita, mas somente o informe (notitia) sensível. Por esta razão posso afirmar que existe um só mundo, e que não existem a quimera, a fénix nem os génios demoníacos”(114, 20-26).

No In Physiognomicon… Commentarius não se encontra um período tão expressivo como este, mas é óbvio que o objetivo de Sanches consiste em mostrar a fragilidade e a inconsistência dos juízos que partem dos sinais corpóreos, visíveis, para a índole psicológica e maneira de ser moral. Passar do visível para o invisível, do real para o abstrato, do físico para o moral, afigura-se-lhe eminentemente precário, tanto mais que empreendia o comentário esclarecendo Aristóteles à luz dos princípios da Física e da Medicina, como expressamente declara (84, 2-4).

Em oposição à máxima particularia non faciunt scientiam, para Sanches o objeto do conhecimento é somente o cósmico, isto é, o concreto e o fatual, sem outra via de acesso que não seja a percepção sensível em união com o discurso lógico.

Omnis cognitio nostra a sensu est, diz reiteradamente no Quod nihil scitur (24, 9-10; 29-30), mas a velha máxima do empirismo não tem em Sanches exatamente o mesmo sentido que Locke lhe conferiu. Para o autor do Ensaio sobre o Entendimento Humano, o problema consistiu em saber como, a partir dos dados sensoriais, se elaboram as ideias gerais; para o autor do Quod nihil scitur a máxima significa que as generalizações e os princípios universais, ao contrário da imediatidade dos dados da sensação, encerram intrinsecamente dificuldades e dúvidas. Por isso, Sanches não hesitou em afirmar que para além do que a sensação dá «tudo é confusão, dúvida, perplexidade, adivinhação: nada é certo”(Qns, 29, 31-32). Esta afirmação como que exigia a formulação de uma explicação da existência dos conceitos ou ideias-gerais, mas Sanches não a tentou, apesar de haver nutrido de psicologia a sua reflexão epistemológica.

Propriamente, a seu juízo, a sensação não dá a conhecer as coisas, porque o conhecimento é função da mente (Qns, 29, 32) e opera-se, não pela apreensão de imagens (simulacra), mas pela conexão imediata da atividade discursiva com a perceção (Qns, 30, 12-14).

Daqui, como temos acentuado, a oposição filosófica de Sanches ao realismo de universais e à existência de seres de razão —, o que, aliás, não obstou a que admitisse, como médico, a existência de virtualidades atuantes, autênticas entidades, como a facultas vegetativa, quae alit, auget et generat, a facultas animalis, quae praeter haec sensum et motum tribuit, a facultas intellectiva, quae superioribus omnibus addit intellectionem, et apertam ratiocinationem, e ainda a facultas pulsifica, graças à qual explicava a pulsação cardíaca. As explicações deste tipo, com serem de nítido recorte abstrativo e pouco coerentes com a crítica do Quod nihil scitur, não afetam a índole da teorização sanchesiana, que, sob certo ponto de vista, é imanentista, enquanto tem por única certeza a que procede da própria consciência racional, e sob outro, está na linha do Positivismo, como expressivamente mostra uma cota do Quod nihil scitur (15, 1-2), ao estabelecer que a ciência dos primeiros princípios, ou seja a Metafísica, não é ciência diversa das demais ciências: a Metafísica ou se move no âmbito da Ciência, ou é mera palavra vã.

Os tratados minores confirmam, por outras vias, estes assertos, pois, como o Quod nihil scitur, assentam na repulsa de conceções que obstam, dificultam ou desvirtuam o conhecimento exato.

O De diuinatione per somnum, escrito quando Sanches já era mestre da Faculdade de Artes, de Toulouse, mas publicado postumamente, descobre, talvez mais francamente do que o Quod nihil scitur, a índole da mentalidade que o ditou. Pelo título, sugere que se ocupa da legitimidade e da forma do conhecimento produzido ou obtido no sono, mas vai além, porque examina também os fundamentos da demonomância e oniromância.

No fundo, Sanches encarou o problema da possibilidade do conhecimento retrospetivo ou antecipado por via onírica ou profética, isto é, o conhecimento de coisas ocultas, quer se tenham verificado no passado, quer se não hajam ainda verificado. Por isso, ao contrário do Quod nihil scitur, cujo título arrogante promete muito e dá relativamente pouco, o De diuinatione per somnum ad Aristotelem promete pouco e dá relativamente muito, por precisar com alguma nitidez o âmbito do conhecimento legítimo e, principalmente, por remover do horizonte da explicação exata dois equívocos, que são ao mesmo tempo duas aberrações, pois mostrar a inconsistência dos conhecimentos proféticos e das revelações demoníacas equivale a afirmar a racionalidade do conhecimento, fundada somente na observação desperta dos sentidos e no exercício lógico da razão.


?>
Vamos corrigir esse problema
REDES SOCIAIS
SUBESCREVA JOAQUIMDECARVALHO.ORG
NEWSLETTER JOAQUIMDECARVALHO.ORG