Os Opera Philosophica de Francisco Sanches

Vai, assim, este tratado, além do problema limitado da adivinhação que se produz no sono, pois examina os seguintes problemas, que considera fundamentais: se existe adivinhação, em que consiste, que géneros apresenta e qual o seu alcance. A marcha do pensamento é clara, e lógica, desenvolvendo-se, essencialmente, em ordem à determinação do que é profecia, das formas por que ela se manifesta e dos processos pelos quais se produz. Sem grande constrangimento, pode dizer-se que tem por objeto a eliminação do irracional na génese e na produção do conhecimento, com base na refutação deste asserto de Jerónimo Cardano, no De rerum varietate: a adivinhação é uma conjetura verdadeira de coisas futuras, que se obtém sem razão determinada (Diuinatio est conjectura vera de futuris, non certa ratione habita).

Aplicando o método refutativo que aplicara no Quod nihil scitur, principalmente em relação à noção de Ciência como rei perfecta cognitio, Sanches decompôs esta definição nos respetivos elementos constitutivos, para os submeter à refutação. Não o seguiremos, para não nos afastarmos do sentido geral do objetivo desta introdução; baste apenas acentuar que Sanches, conjugando os pontos de vista do médico e do filósofo e discriminando os conceitos de adivinhação, previsão e prognóstico, conclui pela legitimidade destes dois últimos quando fundados na experiência humana ou em causas naturais e pela inconsistência da adivinhação do futuro ou do transato por via onírica, demoníaca ou de transe inspirador (enthousiasmus) (118, 10-13).

O exame do conhecimento profético, onírico e demoníaco, ou sejam as pretensas formas do conhecimento obtido por via não-racional, constitui, assim, como que a contraprova da sua conceção sensista.

Sob outro aspeto, é ainda a fenomenologia do conhecimento ilegítimo que estabelece o tema do In librum Aristotelis Physiognomicon commentarius.

O Physiognomicon, que se atribuía a Aristóteles e de cuja autenticidade Sanches parece ter sido o primeiro a duvidar (84, 16-20), tem por objeto a Fisiognomia, ou seja, a arte de conhecer o carácter pelas feições do rosto.

Praticamente, considerava que o assunto é de evidente vantagem, senão de necessidade, mormente em tempos de desconfiança, de dissimulação e de desassossego como os que Sanches diz serem os que vivia (82, 1-15); e teoricamente, o exame da legitimidade da passagem do físico para o moral, do visível e manifesto para o invisível e recôndito, estava na linha da epistemologia sensista do Quod nihil scitur. Demais, a arte fisiognómica tinha então defensores como Cardano, na Metoposcopia (1550), e Giambattista Porta, no De humana physiognomia (Nápoles, 1586), e o texto atribuído a Aristóteles, que o médico segoviano André Laguna traduzira e publicara em Paris, em 1535, sem notas nem esclarecimentos, não havia tido ainda um comentário científico, aguardando a explicação fundada «nos princípios da Física e da Medicina» (84, 2-4).

Coerente com os princípios do sensismo, Sanches não contesta absolutamente a legitimidade do juízo fisiognómico, mas acentua a respetiva imprecisão e fragilidade. A correlação da alma e do corpo é um facto; no entanto, não é lícito fisiognomizar, já porque se ignora a natureza das coisas, já porque a arte fisiognómica não assenta em dados seguros nem aplica um método rigoroso.

Bastam estes traços gerais para mostrar a conexão do De diuinatione per somnum ad Aristotelem e do In librum Aristotelis Physiognomicon commentarius com a epistemologia sensista e, portanto, a continuidade de pensamento que existe entre estes escritos e o Quod nihil scitur. Com o De longitudine et breuitate vitae liber, a problemática apresenta outro curso; o pensamento de Sanches continua coerente com as suas próprias conceções, mas estas conceções não dizem respeito à legitimidade do conhecimento mas à Física e à Psicologia que havia exposto — ou pensava expor — no Examen rerum e no De anima, de cujos textos, aliás, não chegou até nós uma única página.

Pelo fundo de ideias, o De longitudine et breuitate vitae tem, assim, lugar distinto na bibliografia de Sanches, tanto mais que nele patenteia, mais extensamente do que alhures, a correlação do pensamento filosófico com os ensinamentos médicos e, sobretudo, a independência do juízo em relação à autoridade de Aristóteles.

Pelo título, o De longitudine et breuitate vitae anuncia ocupar-se do velho tema com lugar próprio no corpus aristotélico e tratamento peculiar na temática do Estoicismo, designadamente com o De breuitate vitae, de Séneca; pelo desenvolvimento, porém, é diferente dos escritos de Aristóteles e de Séneca. Com o deste, a bem dizer, nada tem de comum, por lhe ser alheio o sentido da catarsis, isto é, da purificação dos instintos e das afeções; e com o de Aristóteles só tem de comum a problemática. Os temas e problemas de que se ocupa são, na estrutura, os do tratadinho aristotélico dos Parva naturalia, mas a solução que lhes dá tem acentos originais de Sanches, em conexão direta com as suas conceções da Física e da Psicologia, como aliás reiteradamente mostra com as variadas referências ao Examen rerum e ao De anima.

O De longitudine et breuitate vitae liber apresenta uma estrutura simples e um desenvolvimento coerente e fácil. Sanches censura no tratadinho dos Parva naturalia, em que este seu escrito radica, a concisão, visto ser de pequena extensão para a importância do assunto, e a prolixidade, visto se ocupar de temas não pertinentes, como o perecimento de seres inanimados; no entanto, a problemática que o ocupa move-se no âmbito da do escrito do Estagirita, pondo de lado os temas afoitos e abrasados da ulterior disputa acerca da alma, mormente após Averróis, Pomponazzi e os dissidentes do Renascimento, dos quais, aliás, cita Luis Vives (58, 8).

É possível que no De anima Sanches se ocupasse destes temas; no De longitudine et breuitate vitae liber, porém, passou à margem deles, pelo que este seu escrito versa somente os dois temas implícitos no título e que, por assim dizer, o dividem em duas partes: a essência da vida, e a razão da maior ou menor duração dos seres viventes.

O tratamento do primeiro destes temas, que constitui a primeira parte, oferece algumas dificuldades histórico-filosóficas e implica correlações com o pensamento físico do autor, insuficientemente conhecido. É principalmente obra de filósofo, enquanto a segunda parte é principalmente obra de médico. Assenta nesta conceção fundamental: a alma é a causa da vida e, portanto, os seres animados são os únicos dos quais se pode dizer, com propriedade, que vivem, e que vivem enquanto a alma neles se infunde.

Não quer isto dizer que seja uma só e a mesma a alma de todos os seres viventes, pois Sanches discrimina a alma das plantas, em virtude da qual se nutrem, crescem e se reproduzem, da alma dos animais, que além disto é «o princípio”da sensação e do conhecimento, e da alma dos homens, dotada de razão e que além das anteriores faculdades é espírito sobrenatural. Correspondendo às formas da vida vegetativa, sensitiva e racional, que Sanches não designa por estes nomes tradicionais, mas cujos conceitos subjazem ao seu discurso, há, assim, três espécies de almas, sendo as dos vegetais e animais, materiais e   mortais, e as dos homens, imateriais e imortais.

Com serem substancial e funcionalmente diferentes, as três almas apresentam de comum o facto de não haver vida onde não há alma; assim, a geração dos seres viventes coincide com o princípio da sua vida, e            a sua duração vital corresponde à duração da coexistência da alma e do respetivo organismo físico. Por isso, Sanches não hesita em afirmar que a vida depende da alma e que ela consiste, propriamente, na permanência da alma no corpo apto a viver, donde a consequência de que as causas da maior ou menor duração da vida procedem mais da alma que do corpo.


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